Tem circulado pelas redes sociais uma reportagem do diário britânico “The Guardian” sobre a atriz Nayara Justino, que chegou a ser escolhida para representar a “Globeleza” em 2013, mas que acabou sendo dispensada depois das primeiras aparições. A reportagem especula que a razão do súbito corte teria sido o fato dela ser negra – o que foi negado pela emissora. As mulheres que encarnam a personagem são tradicionalmente mulatas. O fato é que a página da emissora e o perfil da moça nas redes sociais foram inundados com xingamentos e ofensas racistas. Para muita gente, ela era “negra demais” para ocupar tal posição.
A matéria (o link da reportagem está no final do post) traz uma série de reflexões importantes sobre a sociedade brasileira. O primeiro é relativo com a própria existência de uma personagem como a Globeleza, que reforça a ideia da objetificação feminina, em especial das mulatas. As mulatas “desinquietas”, como dizia o jesuíta André João Antonil, sempre foram alvo de cobiça e desprezo. “Branca para casar, negra para trabalhar e mulata para f…”, era o ditado naqueles tempos. Eram desejadas pela sua beleza e sensualidade, mas inferiorizadas pela sua condição de “mulher de cor”.
Outra questão muito importante que aparece no vídeo é relativa ao desejo de branqueamento da sociedade brasileira. Sabemos que, no Brasil colonial, era possível que ex-escravos conseguissem atingir certo prestígio social. Democracia racial? Longe disso. Tomemos como exemplo Chica da Silva, que se tornou companheira de um dos homens mais poderosos da época, o contratador de diamantes, o português João Fernandes. Os dois viveram juntos por muitos anos e tiveram 13 filhos – todos reconhecidos pelo pai. Ela vivia como uma senhora rica da época: roupas e joias, casa luxuosa e um plantel de escravos. Chica, como tantos forros, queria afastar de sua biografia a mancha da escravidão.
Em “Chica da Silva e o contratador de diamantes – o outro lado do mito”, a autora Junia Ferreira Furtado, relata que muitas mulheres na mesma situação preferiam não se casar com seus companheiros brancos para não atrapalhar o futuro dos filhos. Sem constar na documentação que alguém era filho de uma ex-escrava, ficava muito mais fácil adulterar a árvore genealógica da pessoa, apagando seu parentesco. Tanto que o filho mais velho de Chica foi agraciado com Ordem de Cristo, uma honraria reservada aos nobres, depois de um processo que investigou sua ascendência, habilmente manipulada.
Segundo Mary del Priore, quando o Brasil começava a se tornar uma nação, após a Independência (1822), criou-se um dilema: era preciso afastar-se de Portugal e forjar uma identidade própria, mas como assumir uma índole não branca? Isso era inaceitável. Tentou-se resgatar o passado das civilizações indígenas, especulando-se sobre sua ligação com povos antigos, como egípcios e fenícios. O Romantismo também exaltou uma visão idealizada dos nativos. A contribuição do negro para a formação da nação brasileira, entretanto, era desqualificada pelos intelectuais da época.
Logo após a proclamação da República, a teoria do branqueamento ganhou força com o darwinismo social, muito em voga na época. A ideia era que a sociedade brasileira fosse apagando o negro de sua história – também o índio. Com a vinda dos imigrantes europeus, muitos acreditavam que a tendência era tornar a população cada vez mais branca, por meio da miscigenação e também da exclusão do negro. Nicolau Sevcenko, em “A Literatura como Missão”, nos mostra que estrou em cena um projeto de nação em que tudo que fosse popular, de origem negra ou indígena era renegado. Obviamente, o projeto não teve sucesso, como podemos observar hoje.
Mas o desejo de branqueamento persiste, de certa forma. Na reportagem do jornal inglês, ouvimos depoimentos de atrizes negras contando que, há não muito tempo atrás, as meninas negras eram estimuladas a se casar com brancos para terem filhos mulatos, de preferência “quase brancos”. Ao mesmo tempo, casais inter-raciais ainda provocam reações de espanto, indignação e até ações violentas.
Até hoje, o Brasil é um país extremamente dúbio com relação ao preconceito racial. Poucos se assumem como racistas. E muita gente afirma, de forma convicta, que não existe racismo entre nós, mas casos como o de Nayara colocam em xeque essas teorias…– Texto de Márcia Pinna Raspanti.
Confira o vídeo do The Guardian:
https://www.facebook.com/theguardian/videos/10153931773996323/