Valdir ou Valdirene: o drama da transexualidade

      Em novembro de 1979, a imprensa foi sacudida pela notícia: Valdir Nogueira, agora Valdirene, era o principal personagem do escândalo que abalava São Paulo. Seu médico, o cirurgião plástico Roberto Farina fora acusado de “prática de lesões corporais de natureza”. Ou seja, o médico mudara-lhe o sexo. Valdirene, “que orava diariamente pela libertação do réu”, teve a felicidade de ver os juízes da 5ª Câmara do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo absolverem o médico, extinguindo a pena imposta no julgamento de primeira instância – dois anos de reclusão, com sursis.

     A decisão abria ainda “o caminho ao reconhecimento legal de uma prática médica largamente difundida em alguns países mais adiantados”, segundo a imprensa. Enquanto nos Estados Unidos até aquela data, já haviam sido realizadas 4000 cirurgias, no Brasil existiria, pelo menos, 1200 pacientes potenciais. Segundo estimativas do próprio Farina, haveria um transexual em cada 100000 pessoas. Esperava-se que com o final do julgamento, pacientes e médicos pudessem percorrer caminhos menos tortuosos do que o experimentado por Valdir e o doutor Farina.

     Mas o que os levou às primeiras páginas de jornais e revistas? A operação de Valdir foi realizada em dezembro de 1971, no Hospital Oswaldo Cruz, em São Paulo, e poucos meses depois Valdirene, cujo nome foi retificado com a permissão de um juiz da vara de Família, já podiam não só manter relações no papel de mulher como “garantia conseguir atingir plenamente o orgasmo”. Ela se tornara “uma mulher completa”. Depois disso, voltou para sua cidade natal, Lins, no interior de São Paulo, onde levou uma vida “inteiramente normal” até dezembro de 1975, quando o doutor Farina relatou sua experiência em um congresso médico, tornando o caso público.

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      Toda a repercussão levou o procurador da Justiça, Luís de Mello Kujawski, a encaminhar representação reclamando providencias policiais contra o médico, por julgar que a cirurgia fora um crime. A tese do promotor era de que “os problemas da vítima não eram de ordem física, mas sim psíquica” e que o médico havia agido “sob o desejo da notoriedade, do sensacionalismo”, praticando então uma cirurgia “desnecessária e mutilante” e que serviria apenas para “fixar de modo irreversível e agora sim, incurável, a doença mental da vítima”.

Hércules e Ônfale, de Diego Lopez.

“Hércules e Ônfale”, de Diego Lopez.

      Em defesa do médico foram apresentados inúmeros pareceres médicos que mostravam que o procedimento fora um sucesso e que tinha causado, “senão a cura, pelo menos a melhora do estado da vítima”. Nada disso foi suficiente para impedir a condenação do doutor Farina, que acumulou ainda prejuízos profissionais ao médico e uma indesejada publicidade a Valdirene, que inclusive teve a sentença de retificação de nome revogada, voltando a chamar-se Valdir.

     Entre a gente brasileira, até a virada do século, a maior parte de pessoas que recusavam o sexo que lhes foi determinado no nascimento, preferia tratar do assunto com discrição. Ser transexual era um destino individual e não havia previsão de um status social específico para esses indivíduos. O que eles desejavam era tornar-se membro de outro sexo e não de um “terceiro sexo”. E embora tivessem pontos em comum, cada indivíduo tinha sua história e formulações específicas sobre seu próprio caso. A maior parte se queixava de ser prisioneiro de um corpo que não reconhecia como seu. Sua demanda revestia não o desejo de ser mulher ou homem, mas uma convicção de ser mulher ou homem.

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       Nos últimos anos, desenvolveu-se um movimento transgênero que tem por objetivo transcender o “gênero”. E outro, reagrupando os que desejam um sexo sem gênero fixo, indeterminado, múltiplo. O transexualismo é um fenômeno próprio de nossa cultura. Foi necessário o desenvolvimento de técnicas cirúrgicas e de endocrinologista para tornar possível a transformação corporal. Um verdadeiro corpo do outro sexo? Impossível, porém, pois os cromossomas não podem ser transformados e o interior do corpo, apesar das mudanças externas, continua o mesmo.

        A palavra transexualismo é recente e está ligada às tentativas de agir sobre o corpo para modificá-lo.  Foi o médico alemão Henry Benjamim, pioneiro em intervenções e tratamentos e autor de “O fenômeno Transexual”, publicado nos EUA, quem a cunhou, em 1953.  Em dez anos o conceito se impôs e começou a distinção clínica entre transexualismo e travestismo, que até então se confundiam. No primeiro caso, trata-se de um problema de identidade de alguém que não pode viver na pele de um homem (transexualismo masculino para o feminino) ou na pele de uma mulher (feminino para o masculino). O travestismo é um prazer particular, originado por múltiplos motivos, de vestir-se com roupas do outro sexo, de “montar-se”.

        Depois dos anos de luta e sofrimento e da absolvição do médico, tais cirurgias só começaram a ser regulamentadas pelo Conselho Federal de Medicina em 1997. Apenas em 2008, é que o governo oficializou as chamadas “cirurgias de redesignação sexuais”, implantando o “Processo Transexualizador” através de seu órgão da saúde, o Sistema Único de Saúde – SUS. O mais importante, contudo, é a sociedade aceitar a identidade narrativa de cada transexual: ou seja, aceitar a narrativa que cada um faz de sua própria história, sem que seja necessário escondê-la ou apagá-la.

  • Texto de Mary del Priore.
lustração de Lily e Gerda, por Gerda Gottlieb.

lustração de Lily e Gerda, por Gerda Gottlieb.

3 Comentários

  1. Helena d'Ávila Samogin
  2. Renata Cardoso
  3. Carlos

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