Desde o “achamento” do Brasil, a mulher trabalha e luta pela sua sobrevivência e dos seus. No início da colonização, em pequenos povoados podiam se encontrar portuguesas, índias, africanas e mestiças, livres e escravas, em cidades ou regiões isoladas do interior, vivendo de forma diversa daquela apresentada pela tradição. Um dos primeiros observadores da vida independente, em que as mulheres conduziam seus próprios negócios, empreendimentos e ações judiciais, foi o francês Pyrard de Laval, em 1611. Impressionado, ele anotou: “Travei conhecimento e fiz amizade com outra jovem portuguesa, uma nativa do Porto, chamada Maria Mena, que dirigia uma das melhores tabernas da cidade”
Mulheres ativas como a taberneira Maria Mena, havia muitas. Elas multiplicavam-se em pequenas comerciantes, fazendeiras, vendedoras e fabricantes de doces, rendas e fios, lavadeiras, fiandeiras, escravas, costureiras, prostitutas e parteiras. Às margens da atividade agrícola, muitas se ocupavam em desenvolver um artesanato caseiro, com apoio da mão de obra indígena ou negra, que resultava em têxteis, doces em conserva, chapéus, redes, sabão e outros utensílios e produtos de uso corriqueiro cujo transporte e comercialização ficava nas mãos dos homens.
Entre o fim do século XVII e XVIII, contudo, a migração interna abalou fortemente a vida familiar de muitas mulheres na região sudeste. Elas viam seus maridos partir em busca de ouro, para Minas Gerais e Goiás, ou alistar-se para lutar contra os espanhóis, deixando-as sós e obrigando-as a tirar o sustento de sua criatividade. Vivendo com seus filhos legítimos ou ilegítimos, acomodando sob o mesmo teto velhos genitores, escravos e às vezes, um ou outro agregado, as mulheres não apenas sobreviviam mas organizavam condições de vida afetiva e familiar para o seu grupo. Sua vida quotidiana era ritmada pelas festas e procissões da igreja, a tarefa de ensinar as primeiras letras e orações aos filhos ou de levá-los às benzedeiras, quando pequeninos, para tratar-lhes as febres ou o quebranto. Seu mundo integrava-se à natureza que as cercava, de onde extraíam remédios caseiros, garrafadas e poções mágicas para os males do corpo ou da alma. Parte do tempo era dedicado ao suprimento dos objetos que faziam parte de sua vida privada: a confecção de cestos, redes, peças em barro. Junto com os filhos pequenos, cuidavam de quintais, hortas e da criação de animais domésticos, assegurando um mínimo de alimento e renda para a subsistência familiar.
Em Minas Gerais, o pequeno comércio mereceu cuidadosos estudos constituindo-se na forma de sobrevivência de muitas escravas que, graças aos lucros ai obtidos conseguiram comprar de seus senhores, a própria alforria e a de seus familiares. Tantas delas, conhecidas como “vendedoras de tabuleiro”, circulavam no interior de povoações e arraiais de extração do ouro oferecendo gêneros comestíveis como pastéis, doces, leite, pães, banana, fumo e bebidas. Muitas vendas, responsáveis pela comercialização de “secos” (tecidos, artigos de armarinho, utilidades domésticas) assim como de “molhados” (bebidas e comestíveis em geral) ficavam a cargo de mulheres forras ou livres pobres. Muitas transformavam tais vendas em concorridos pontos de encontro para cativos e libertos. Neles dançava-se ao som de batuques, tocava-se música, jogavam-se cartas e passavam-se segredos sobre quilombos e fugas de escravos. Ai, também, o ouro roubado e muitas vezes, contrabandeado, tomava um destino diferente, bem longe dos olhos das autoridades, libertando outros cativos.
No nordeste, por outro lado, vamos encontrar uma sociedade altamente estratificada. Na hierarquia estabelecida entre mulheres haviam as senhoras, “dona fulana” ou apenas “dona”; em seguida as “pipiras” ou “cunhãs”, manteúdas pelo fazendeiro, mais tarde pelo político provincial e depois as escravas e negras. As mulheres de classe abastada não tinham muitas atividades fora do lar. Eram treinadas para desempenhar o papel de mães e exercer as prendas domésticas. As menos afortunadas ou viúvas faziam doces por encomenda, arranjos de flores, bordados a crivo, davam aulas de piano e solfejo, ajudando, assim na criação e educação da numerosa prole que costumava cercá-las. Na época, era voz comum que a mulher não precisava, e não deveria, ganhar dinheiro. As pobres não tinham escolha se não garantir o próprio sustento. Eram, pois, costureiras e rendeiras, lavadeiras, fiadeiras ou roceiras – estas últimas, na enxada, ao lado de irmãos, pais ou companheiros, faziam todo o trabalho considerado masculino: torar paus, carregar feixes de lenha, cavoucar, semear, limpar a roça do mato e colher. As escravas trabalharam principalmente na roça, mas também foram usadas por seus senhores como tecelãs, rendeiras, carpinteiras, amas-de-leite, pajens, cozinheiras, costureiras, engomadeiras e mão de obra para todo e qualquer serviço doméstico.
As brasileiras nunca tiveram “vida fácil”! Sua coragem tem – e muita – história. –
Mary Del Priore
Interessante. Algo parecido com o que é narrado sobre a mulher medieval europeia na ausência do homem, o cavaleiro que rumava às cruzadas ou que em geral defendiam o rei e passava muito tempo fora.
Enfim, uma “lei” parece estabelecer-se quando analisamos a história da mulher: podemos dizer que a ampliação dos seus papeis sociais, inclusive no que diz respeito às atribuições do homem, parece sempre ocorrer na ausência deste? De algum modo acho que o tempo presente já desmente essa suposta “lei”.
Essa questão das mulheres no Brasil colonial muito me atrai. Porém, para vocês que são especialistas no assunto, gostaria de fazer-lhes a seguinte pergunta: É possível aplicar o conceito de gênero transportando-o para o Brasil colônia do séc. XVI? Claro, levando sempre em consideração o contexto da época vigente. Ou se estaria cometendo anacronismo uma vez que o conceito veio surgir séculos depois?! Aguardo ansiosamente uma resposta!
Nos meus livros você não encontrará esse conceito, a não ser utilizado de forma genérica. Prefiro sempre seguir o conselho de Lucien Febvre e ver o que significava a palavra em seu tempo. Use dicionários de época. Ele são um guia melhor do que os modismos teóricos que importamos do exterior. Mary del Priore
tenho uma tia doceira, em minas, que tinha uma casa sem marido, com filho, nora, netos e um monte de quase agregados, que trabalhavam na fazeção dos doces e no quintal. toda vez que ia visitá-la via gente comprando doces, vendendo figo, cidra e outras matérias primas que iam parar no tachos. e o povo da roça usava a casa dela como um hub logístico, deixavam depositados suas mercadorias (os frangos, frutas, verduras e legumes e outras pequenas colheitas) enquanto acertavam os detalhes das vendas e faziam suas comprinhas na cidade. a casa dela parecia uma venda, de tão movimentada.
É isso mesmo, Rai. A história da sua tia é muito comum, desde os tempos coloniais. Os homens tinham o hábito de aventurar-se para outras regiões e deixar a mulher sozinha com os filhos, sem dinheiro, muitas vezes. Então, muitas mulheres foram obrigadas a ser chefes de família, e cumpriram o seu papel da melhor maneira possível. A ideia de que as mulheres só ficavam em casa naquela época é um pouco distorcida, isso acontecia mais entre as elites (mesmo assim houve casos de fazendeiras que cuidaram dos negócios sozinhas), as mais pobres sempre tiveram que trabalhar e enfrentar as dificuldades.
Post interessante, o q se observa é q a mulher tem seu papel de destaque, mesmo muitas vezes não obtendo o devido valor, sua luta trava as barreiras do tempo, sendo a base para muitas sociedades no decorrer da História, desde a sociedade indígena do período colonial perdurando até os nossos dias.