O Trabalho Infantil no Brasil

Dos escravos desembarcados no mercado do Valongo, no Rio de Janeiro do inicio do século XIX, 4% eram crianças. Destas, apenas 1/3 sobrevivia até os 10 anos. A partir dos 4 anos, muitas delas já trabalhavam com os pais ou sozinhas, pois perder-se de seus genitores era coisa comum. Aos 12 anos, o valor de mercado das crianças já tinha dobrado. E por quê? Pois considerava-se que seu adestramento já estava concluído, e nas listas dos inventários já aparecem com sua designação estabelecida: Chico “roça”, João “pastor”, Ana “mucama”, transformados em pequenas e precoces maquinas de trabalho.

Tais máquinas compravam-se a preço baixo e tinham a vantagem de prometer vida longa em funcionamento. Gilberto Freyre, criticando o “ensardinhamento” em que viajavam os africanos, no auge do tráfico, refere-se a “meninos e adolescentes que sob os nomes técnicos de molequinhos, moleques, crias e molecões”, encontram-se, tantas vezes nas faturas de carregamentos de escravos e nos anúncios de vendas e fugas. “Das faturas de escravos destaque-se este caso típico: de quarenta negros mandados buscar em 1812 por Bento José da Costa, o mais poderoso escravocrata pernambucano de seu tempo, e que constam de um livro manuscrito do outrora engenho do Salgado (…) só dois eram “negros barbados”; os mais eram moleques, molequinhos, crias e molecões. Dezesseis moleconas”.

Alguns anos mais tarde, o reverendo Walsh, conta Freyre, interessou-se por uma menina “de ar e pensativo e doce” que viu no mercado do Rio. A uma chicotada forte do traficante cigano, levantou-se. “Walsh viu-a, então, nua, de pé, diz ele que toda acanhada. O cigano quis faze-la tomar atitudes interessantes. Mas, o padre inglês não consentiu e a negrinha dissolveu-se tímida, medrosa, entre outros negros”. A menina lhe parecera tão discreta, pudica e delicada que nenhum inglês bem formado – diz Freyre – duvidaria por um instante de que era dotada da mesma natureza e sentimento, de suas próprias filhas.

Trabalho ao longo da infância, sem tempo para a idéia que comumente associamos à infância, a da brincadeira e do riso, era o lema perverso da escravidão. Contudo, a mesma resistência que se lhe opunham os adultos foi transmitida à criança. Não foram poucas as que contrariaram a obrigação do eito e a exploração, pela fuga. Freyre os acompanhou através de anúncios publicados em jornais pernambucanos e cariocas no século XIX. Eram procurados e caçados, como seus ancestrais:

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“Também deve ter sido criado em casa e com muito mimo, em pequeno ninado no colo das iaiás e posto para engatinhar pelos tapetes de lã inglesa da sala de visitas, o mulatinho cor-de-rosa e talvez de sangue ilustre que desapareceu de uma casa do Recife, em 1865; “estatura alta, bem alvo e bonito, seco de corpo, braços compridos, dedos finos e grandes, sendo os dois mínimos dos pés bastante curtos e finos; tem dezoito (18) anos de idade, cabelos corridos e pretos levando eles rentes…mãos e pés bem feitos e cavados, olhos pardos e bonitos, sobrancelhas pretas e grossas, não buça, levou calça de brim branco e já usada e camisa de chita com flores roxas”. Já a mulatinha puxando a sarará, de nome Joana, de 14 anos prováveis, fugida de um engenho do Cabo, seria, com suas pernas e mãos muito finas, “uma verdadeira flor do pecado”, cor alvacenta, cabelo carapinho e russo, corpo regular, com todos os dentes, mas com “vestígios antigos de chicote no corpo…a fala às vezes viciosa…padecendo de bouba nas partes ocultas”.   

Quando da abolição da escravidão, as crianças e adolescentes moradores de antigas senzalas continuaram a trabalhar nas fazendas de cana. Tinham a mesma idade de seus avós, quando esses começaram: entre 7 e 14 anos. Até hoje, ainda cortando cana, continuam despossuídas das condições básicas de alimentação, moradia, saúde, educação e garantias trabalhistas. Como no passado, o trabalho doméstico entre as meninas, também é constante, constituindo-se num “outro” turno, suplementar ao que se realiza no campo. Como se não bastasse a ação de fatores econômicos a interferir na situação da criança, a ausência de uma política do Estado voltada para a formação escolar da criança pobre e desvalida só acentuou seu miserabilismo. Ora, ao longo de todo esse período, a República seguiu empurrando a criança para fora da escola, na direção do trabalho na lavoura,  alegando que ela era “o melhor imigrante”.

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No inicio do século, com a explosão do crescimento urbano em cidades como São Paulo, esses jovens dejetos do que fora o fim do escravismo, encheram as ruas. Passaram a ser denominados “vagabundos”. Novidade? Mais uma vez, não. A história do Brasil tem fenômenos de longa duração. Os primeiros “vagabundos” conhecidos eram crianças brancas  recrutados pelos portos de Portugal, para trabalhar como intermediários entre os jesuítas e as crianças indígenas, ou como grumetes nas embarcações que cruzavam o Atlântico. No século XVIII, terminada a euforia da mineração, crianças vindas de lares mantidos por mulheres livres e forras, perambulavam pelas ruas, vivendo de expedientes muitas vezes escusos, – os nossos atuais “bicos” – e de esmolas. As primeiras estatísticas criminais elaboradas em 1900 já revelam que esses filhos da rua, chamados durante e Belle Époque de “pivettes”, eram responsáveis por furtos, “gatunagem”, vadiagem e ferimentos, tendo na malícia e na esperteza as principais armas de sobrevivência. Hoje, quando interrogados pelo serviço social do Estado, dizem com suas palavras, o que já sabemos desde o inicio do século: a rua é um meio de vida!

Como se vê, a pobreza e a falta de escolarização da criança brasileira, ao longo de sua historia, tornam as teses europeias absolutamente inadequadas face às realidades de uma sociedade onde, como explica “uma menina de rua”, “sonhos não enchem a barriga”! A divisão da sociedade, velha divisão dos tempos da escravidão, entre os que possuem e os que nada têm só fez agravar a situação dos nossos pequenos.

Outra característica desse trabalho é que diferentemente da historia da criança feita no estrangeiro, a nossa não se distingue daquela dos adultos. Ela é feita, pelo contrario, à sombra daquela dos adultos. No Brasil, foi entre pais, mestres, senhores e patrões, que  pequenos corpos tanto dobraram-se à violência, às humilhações, à força quanto foram amparados pela ternura  os sentimentos familiares os mais afetuosos.  Instituições como as escolas, a Igreja, os asilos e posteriores instituições do Estado para o amparo aos menores, a legislação ou o próprio sistema econômico fizeram com que milhares de crianças se transformassem, precocemente, em gente grande. Mas não só. Foi a voz dos  adultos que registrou, ou calou, sobre a existência dos pequenos, possibilitando ao historiador escrutar esse passado através de seus registros e entonações: seja através das cartas jesuíticas relatando o esforço de catequese e normalização de crianças indígenas, ou a correspondência das autoridades coloniais  sobre a vida nas ruas, pano de fundo para as crianças mulatas e  escravas. Seja através das narrativas dos viajantes estrangeiros, os textos de sanitaristas e de educadores, os Códigos de Menores, os jornais anarquistas, os censos do IBGE ou etc.

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O que restou da voz dos pequenos?  O desenho das fardas com que lutaram contra o inimigo carregando pólvora para as canhoneiras brasileiras, na guerra do Paraguai; as fotografias tiradas por um “photographo” como Christiano Jr, que as capturou nas costas de suas mães, envoltos em panos da Costa, ajudando-as com seus tabuleiros de frutas, aprendendo a jogar capoeira. Não há, contudo, dúvida que foi, muitas vezes, o “não registrado” mal estar das crianças frente aos adultos que obrigou os últimos,  a repensar suas relações de responsabilidade para com a infância, dando origem a uma nova consciência frente aos pequenos, que se não é, hoje, generalizada, já mobiliza grandes parcelas da população brasileira. – Mary del Priore

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Foto de criança negra no final do século XIX (acervo digital do Instituto Moreira Salles)

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  1. João Carlos

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