No ano passado, as marchinhas foram o alvo dos ataques: acusadas de racistas e misóginas, muitas foram banidas dos blocos de Carnaval. Neste ano, a polêmica está relacionada às fantasias. É desrespeito fantasiar-se de índio ou cigano? É ofensivo ver grupos de homens vestidos de mulheres? E mais ainda: é desejável tentar submeter o Carnaval às regras da sociedade? Impregnada de tradições pagãs, a festa sempre foi sinônimo de transgressão, inversão dos papéis sociais. Na Idade Média, os foliões aproveitavam para livrar-se das obrigações cristãs, muitas vezes, protegidos pelas máscaras. A Festa dos Loucos, que iria desaparecer no século XV, invertia a hierarquia clerical, com danças, sermões cômicos, cânticos religiosos com duplo sentido e padres fantasiados de mulheres. A ideia era viver suas fantasias, despir-se dos preconceitos e obrigações sociais, para extravasar os desejos ligados à sexualidade e cometer todas sorte de excessos.
Mary del Priore nos conta que em regiões do norte da Espanha, por exemplo, a festa permitia a inversão do papel das mulheres: no dia 5 de fevereiro, dedicado à santa Ágata, elas tomavam o poder em casa e nas ruas, desfilando com danças e cânticos. Quem quer que ousasse contrariar as “ágatas” era violentamente espetado com fusos e agulhas. Na Grécia, mais especialmente na Trácia e Macedônia, a festa se celebrava no dia 8 de janeiro. As mulheres acorriam à casa da mais velha parteira, a “babo”, vestidas com suas mais belas roupas. Embaladas por musicas, confeccionavam um sexo masculino com legumes ou embutidos e, travestidas de homens, iam para as ruas, onde perseguiam e maltratavam o sexo oposto. Para terminar, um banquete celebrava as concepções e os partos do novo ano.
Em outras regiões, onde as mulheres não participavam tão diretamente aos jogos de inversão, preparavam nas cozinhas, alimentos – polentas, doces, millas – que seriam não apenas ingeridos, mas seus restos serviam a uma grande batalha de comida realizada na Quarta-Feira de Cinzas. Não faltavam os homens, que depois de comer exageradamente, imitavam a gestação das mulheres, macaqueando partos e dando à luz a um bebe chorão e faminto O bebe era um dos membros do grupo. A brincadeira com a gravidez masculina retoma um tema que a festa torna explícito: o da reprodução. Comidas flatulentas, capazes de encher a barriga de varões lhes induziam a parir um filho… Filho do carnaval. Não faltavam críticas aos poderosos: alusões com duplo sentido, discursos cheio de intenções, caricaturas.
No Brasil, não foi diferente: desde os tempos coloniais, o Carnaval era um período de brincadeiras (algumas até muito inocentes), dança, bebida, comida e afronta às regras estabelecidas. Nos blocos, bailes e desfiles sempre reinou a sensualidade e a descontração, mesmo com desaprovação dos setores mais conservadores. A inversão de papéis de gênero também se tornou comum. De acordo com o brasilianista James N.Green, durante muito tempo, o carnaval brasileiro, com seu cortejo de homens travestidos de mulher, vendeu, dentro e fora do país, a imagem de uma convivência pacífica da sociedade com a homossexualidade e a bissexualidade. No livro “Além do carnaval: a homossexualidade masculina no Brasil do século XX”, o autor mostra que por debaixo dos trajes à moda de Carmen Miranda, típico mito de exportação da alegria e descontração carnavalescas, sempre esteve escondido não a tolerância, mas o preconceito.
É importante refletir sobre o que as fantasias dizem sobre a nossa sociedade. Homens vestidos de mulheres, geralmente, se fazem parecer figuras grotescas, destacando seus traços masculinos (barba, pernas peludas, ombros largos) em contraste com roupas femininas exageradas e vulgares, além da maquiagem carregada. Revela o machismo de nossa sociedade? Sem dúvida, mas o machismo não é parte integrante dela? Fantasias de índios ou ciganos não mostram, quase sempre, total desconhecimento da rica cultura desses povos? Obviamente, mas em vez de tentar proibir tais fantasias, não deveríamos discutir mais diferenças culturais? O debate desses temas, contudo, desnuda alguns dos grandes dilemas dos tempos atuais, como gênero, assédio, pudor, alteridade. Somos uma sociedade que precisa lidar com limites comportamentais, morais e éticos cada vez mais tênues e em constante modificação.
Discordo totalmente da afirmação de que o “politicamente correto” estaria acabando com o Carnaval. Nelson Rodrigues acreditava que a nudez iria decretar a morte da festa de Momo. “O carnaval está morto pra burro. E o que mata o carnaval é o impudor. Antigamente, quando havia pudor, o carnaval era a festa mais erótica do mundo. Hoje, o pudor é um anacronismo intolerável”. Não foi o que aconteceu: as festividades carnavalescas dominam as ruas e as conversas, com sensualidade de sempre. E a transgressão assusta conservadores e até os que se dizem libertários.
- Texto de Márcia Pinna Raspanti.
Genial o texto. Realmente pede reflexões. Não apenas o discurso intitulado “politicamente correto” costuma tentar fazer valer um tipo de discurso não mais tolerável em uma sociedade que busca novas mentalidades, como devemos observar que o “falso humor” apenas serviu por décadas como representação de modelos excludentes e de um público “bestializado” que assistia o escárnio de si. Fico feliz em poder vivenciar o momento em que o senso crítico parece estar se aguçando e novas gerações buscam, através de um pensamento questionador, desestabilizar antigos tabus. Quer o humor, bem como as transgressões carnavalescas com seu lado burlesco de ser, continuem sendo esse momento de extravasar sem a necessidade do apelo a práticas discursivas homofóbicas, racistas, etc. Devemos, como historiadores, também estar sempre atentos ao anacronismo, já que buscar certas nostalgias é simplesmente não estar alinhado à contemporaneidade. Parabéns mais uma vez pelo texto e obrigado pela reflexão. E claro, bom carnaval!