O aborto é um tema controverso e delicado. Acho curioso que, em uma eleição em que três mulheres disputam a presidência da República (Dilma Rousseff, Marina Silva e Luciana Genro), as discussões sobre o assunto tenham sido praticamente esquecidas. Um problema de saúde pública, mas que ainda desperta reações ferozes, devido a convicções religiosas e morais. Vejamos como o assunto foi tratado no passado:
Aborto é fantasma antigo. Textos de cronistas e médicos entre os séculos XVI e XVIII, já comentavam o fato. A ingestão de ervas, carregar fardos ou dar pulos eram manobras conhecidas para fazer o fruto renunciar. Em caso de desespero, recorria-se a todo o tipo de objeto pontudo: de agulhas a canivetes, de colheres a tesouras de costura ou espetos de cozinha. Temia-se mais a gravidez indesejada do que a morte por infecção. Viajantes de passagem pelo Brasil observaram a venda de ervas abortivas, como a arruda, pelas ruas das cidades. Em tabuleiros, as escravas costumavam oferecê-la de porta em porta. Entre mulheres murmuravam-se, baixinho, fórmulas para dar fim ao problema: provocar vômitos e diarréias violentos era uma delas. Todas as mulheres conheciam alguma solução.
O aborto era utilizado pelas escravas como forma de resistência contra o cativeiro. O jesuíta João Antônio Andreoni, o Antonil, em 1711, alertava que os senhores deveriam tratar bem suas servas para evitar este tipo de prática. Dizia ele, em “Cultura e Opulência do Brasil”: “Pelo contrário, algumas escravas procuram de propósito aborto, só para que não cheguem os filhos de suas entranhas a padecer o que elas padecem.”
Até o século XIX, a Igreja tinha certa tolerância em relação ao aborto. Acreditando que a alma só passava a existir no feto masculino, após quarenta dias da concepção, e no feminino, depois de oitenta dias, o que acontecesse antes da “entrada da alma”, não era considerado crime nem pecado. Tudo se complicava, porém, se pairasse dúvidas sobre o aborto ser resultado de uma ligação extra-conjugal.
Frente ao Estado, leis discutiam se o aborto fora voluntário ou involuntário. Surgiram leis contra as abortadeiras e a partir de 1830. Uma delas condenava a cinco anos de trabalho forçado quem praticasse o aborto, ainda que com o consentimento da gestante. Essa escapava impune.
A partir de 1890, o Código Penal da República passou a punir a mãe que arrancasse o filho do ventre: cinco anos de reclusão com pena reduzida a um terço, em caso de “defesa da honra”. Ficavam isentos, os abortos realizados para salvar a vida da gestante.
A partir de 1894, a Medicina Legal deu sua contribuição ao assunto. Introduziu-se o “exame de corpo de delito”, antes feito por boticários, e depois do Código da República por “peritos oficiais” médicos. Exames químicos-toxicológicos permitiam identificar se o aborto fora provocado e qual o tempo de gestação do feto. Um deles consistia em injetar a urina da acusada numa coelha. Se houvesse alterações nos ovários do animal, o aborto estaria confirmado.
No início do século XX, o controle da natalidade se converteu em questão de interesse público: o problema “populacional” era importante para pensar-se o desenvolvimento nacional, articulando-se com os debates que animavam os homens públicos na época. A natalidade era fundamental não só para a continuação da espécie – argumento secular – mas para a sociedade. Medicina e política davam-se as mãos, prescrevendo normas para o comportamento reprodutivo. O aborto entrou na mira das autoridades. Passou a regular-se a diferença entre contracepção e aborto. Isso foi importante, pois até poucas décadas atrás, contraceptivos e abortivos eram anunciados em jornais e revistas, vendidos em farmácias ou a domicílio.
Muitos “medicamentos para mulheres” disfarçavam abortivos. E o que dizer de sua adoção, sem maiores dramas de consciência? A vida burguesa e urbana conduziu a um controle individual das mulheres sobre sua sexualidade. E há quem diga que a contracepção foi um aspecto fundamental da formação da sexualidade burguesa. – Mary del Priore e Márcia Pinna Raspanti.
“Vendedores de milho”, de Debret.
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