Olá, amigas e amigos. Se você é professor de história ou gosta da nossa, venha conversar na Feira Nacional do Livro de Poços de Caldas (Flipoços 2018). Conversar comigo, mas, também com vários escritores brasileiros. Escritores, mas, sobretudo memorialistas. Você os conhece. Seus rostos estão em tantas capas de livros. São tão diversos: há os irônicos, os proseadores, os vaidosos, os tristes e os alegres. Dentre eles, muitos retratos foram apagados, assim como sua obra. Daí a importância dessa conversa. Ela é cheia de vozes distantes. De sotaques diferentes. Érico Veríssimo e José Lins do Rego, Wilson Martins ou Zélia Gattai entre outros, trazem na forma de escrever o som das palavras nas diferentes regiões do país. Trazem junto com o verbo, hábitos, gestos, vivências. A conversa nessa sala é sobre memórias, lembranças e história.
A pergunta que me fiz em meu último livro, Histórias da Gente Brasileira volume III foi: pode uma vida contar a História? Quem recorda suas pequenas histórias, conta também a grande História? E nas que são relembradas, encontramos as marcas do passado, os fenômenos que se repetem, a permanência dos hábitos ou as rupturas com a tradição, assunto desse livro? O poeta diria que a memória é como a corrente, forte e maciça, que puxa do fundo do poço, o balde cheio de lembranças. Vidas passadas, memória e histórias estão misturadas nessa matéria a que recorremos quando queremos recordar. A memória é uma janela que abrimos para ver o mundo daquele que lembra. E uma janela que nos permite, também, alargar o nosso. Águas passadas? Nada disso. Um arquivo de crenças, de valores coletivos que persistiram na forma de hábitos e costumes.
Nas últimas décadas, a publicação de memórias narrando a vida cotidiana, as experiências individuais mais do que os grandes fatos históricos causaram, contudo, tanto impacto junto à opinião pública que os historiadores se sentiram na obrigação de examinar a questão mais de perto. Ora, muitas e muitas vezes, os próprios historiadores recorreram a testemunhos orais, – existe mesmo uma abordagem intitulada História Oral – mas, só lhes dando confiança, quando confirmados. Historiadores também escreveram “Ensaios de ego-História”: maneira de contar ou de lembrar suas trajetórias e falar de suas escolhas metodológicas, fazendo-se, enfim, historiadores deles mesmos. E graças… À memória.
A memória não é o rebotalho da história, nem um material bruto que só podemos usar depois de passar pela peneira da grande História. É preciso, sim, confrontá-la a outros testemunhos da mesma forma que fazemos com documentos escritos, imagens ou objetos. Por outro lado, a memória acolhe experiências psíquicas e espirituais que nos convidam a compreender a complexidade dos comportamentos, atos e fatos, além de ser um instrumento de luta contra discriminações e desigualdades.
Esse livro demonstra que a oposição entre uma e outra não pode ser absoluta. As memórias narradas e escritas são um segmento importante da experiência vivida. Sobretudo, quando o que foi retido tem a ver com o mundo material – mundo da terra, do trabalho, da casa, dos objetos, do consumo e do corpo. Assim como tem a ver com as marcas que os eventos externos deixam nas pessoas – alegrias de um nascimento, paixões amorosas, medo da violência, tristezas da morte. As emoções mostram formas de sentir e pensar que ajudaram nossos antepassados a enfrentar uma época em que o barulho das patas de cavalo ou das rodas do carro de boi foi substituído pelo silêncio dos pneus ou o som das lagartas dos tanques de guerra.
Nesse terceiro volume de Histórias da Gente Brasileira optamos por conversar com autores da nossa literatura. Suas memórias permitiram agrupar lembranças num álbum de retratos do que para eles importou, na primeira metade do século XX. Trata-se de fonte histórica rica, pois é a voz direta dos atores de um tempo. Eles nos contam o que viram, ouviram e viveram. Não estamos preocupados com o estilo, mas com o testemunho de seu modo de vida: o de uma geração que assistiu passar a História da República Velha e do Estado Novo. Para muitos, e em diferentes partes do país, as mudanças no cotidiano trouxeram maior impacto do que as revoluções ou a vida política. Por exemplo, o advento da radiola ou do Ford bigode ocasionou maior impressão do que a vitória de Getúlio em 1930 ou a revolução constitucionalista de 1932.
Na nova bandeira do Brasil, sob o lema “Ordem e Progresso”, uma constelação de estrelas. Estrelas de intensidade e brilho diverso, assim como diversos eram os estados da nação. O país era feito de vários Brasis. E de Brasis em tempos diferentes. Entre os memorialistas que expressam estas diversas temporalidades, não se vêem conceitos caros aos estudiosos como “cidadania”, “classes”, “modernização”, “elite”, pois seus apontamentos não querem explicar. Apenas descrever: “era assim”.E suas descrições sobreviveram. São instantâneos preciosos. Suas vozes nos convidam a percorrer o passado e aproximam a literatura da história. E não importam quais histórias tais memorialistas nos contam, pois eles contam também a nossa. E eis a razão pelo qual vale a pena conhecê-los ou relê-los. Por isso mesmo, venha conversar conosco…
Mary del Priore participa da Fipoços no dia 8 de maio, às 19h30.

Mary del Priore participa da Feira Nacional do Livro de Poços de Caldas