Os impactos ambientais da colonização: as pragas e o suplício dos trabalhadores

As queimadas e o desmatamento afetaram o equilíbrio ecológico da Colônia. Como resultado, surgiram os inimigos naturais que castigavam as plantações e o homem. A cada nova espécie vegetal introduzida pelos europeus, observava-se o surgimento de nova praga. O desmatamento atingia os animais capazes de ajudar no controle dos formigueiros, como pássaros, morcegos, cobras e tamanduás; as frequentes queimadas só multiplicaram a praga que se fazia acompanhar de ervas daninhas.

         Havia ainda aquelas pragas que não prejudicavam as plantas, e sim os trabalhadores. Um temor de escravos e trabalhadores livres era o número de répteis desconhecidos, sobretudo de serpentes, nos canaviais. O desconhecimento de ofiologia incentivou cronistas do início da colonização a fazer listas extensas nas quais constavam cobras “espantosas e medonhas!”. Desde cascavel, jiboia, surucucu, caninana e jararaca até a boicupeganga, descrita pelo padre Cardim como “tendo espinhos pelas costas, muito grande e grossa”, a crença na existência de serpentes de duas cabeças e voadoras aumentava muito o medo dos colubrídeos.

        Em meados do século XVII, Guilherme Piso mostrou que a destruição das matas, e consequentemente dos inimigos naturais das cobras, só fez crescer o problema. Em lista escrita em delicioso tupi, ou “língua geral”, o autor identifica as seguintes espécies: “boiçinininga, boiçuciba, surucucu, çurucutinga, ibiracoá, boiguaçu, ibibobóca, boiábi, cacabóia, caninana, bitiapó, jararaca, iararaepéba, abiiaram, amorepinima, manúma, tareiboia, çucuriiu…” Dentre elas, a mais medonha era a “boiçinininga: a esta tão perniciosa cobra parece ter a benévola natureza como por precaução, ajuntado um chocalho para que, advertindo por este som, seja o homem, seja o gado ou jumento, livre-se a tempo do inimigo próximo”. Trata-se da cascavel, cuja lendária forma de ataque alimentou o imaginário colonial: “Metida a extremidade da cauda no ânus do homem, causa-lhe imediatamente a morte; o veneno, porém, que deita da boca ou dos dentes, tira a vida muito mais devagar…”.

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       Contra as cobras, a medicina colonial possuía um vasto, mas precário, arsenal de medicamentos. Conta Nieuhof que “o melhor remédio que os brasileiros conhecem contra o veneno desta como de outras víboras é a cabeça do próprio réptil, reduzida a uma espécie de pasta, num almofariz, e aplicada sobre a mordedura”.

     As partes feridas podiam também ser lavadas com saliva e queimadas com ferro em brasa. Porém, o convívio diário com variada legião de víboras acabou por gerar uma imagem ambígua a respeito delas. Não à toa o folclore da cana incorporou a imagem da cobra, no mito da “serpente dos canaviais”: gigantesca, dona de inúmeros olhos capazes de enxergar no escuro e dona imperial da plantação. Ela era a guardiã dos campos até a lavoura transformar-se em açúcar. Nas noites de vento, a chorosa voz de queixa que se ouvia, assim como o urro medonho, era dela.

       O canavial era padroeiro de outros seres peçonhentos. Os trabalhadores livres e escravos sofriam com eles. Havia lacraias, aranhas, escorpiões, baratas, pulgas, carrapatos, percevejos e diversos tipos de ácaros. As condições de trabalho precárias tornavam ainda mais danosa a ação desses bichos. A ausência de calçados, por exemplo, facilitava a proliferação do “ainhum” – também denominado de “bicho-de-pé, bicho-de-porco, bicho-do-porco, espinho-de-bananeira, jetecuba, nígua, pulga-de-areia, sico, taçura, tunga, xiquexique, zungue, zunga, zunja” –, parasita hematófago que roía vorazmente os dedos dos pés, mutilando homens, mulheres e crianças. Os mosquitos e pernilongos, por sua vez, causavam outros estragos cotidianos: “estes molestíssimos insetos” – informa Guilherme Piso – “são temidos com razão por todos os habitantes, tanto atormentam e picam os agricultores que infestam com sua mordedura dolorosa não só os membros nus, mas também os vestidos, lembrando as pontas das agulhas”. O suplício era tão grande que alguns senhores usavam a exposição ao inseto como uma forma de castigo:

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“Lembro-me de que uns etíopes [ou seja, escravos], amarrados a um pau, de ordem do seu senhor, e assim deixados por uma noite inteira (gênero espantoso de suplício), no dia subsequente estavam tomados de delírio só pelas dores e tormentos das picadas.”

      Dos pântanos e manguezais supunha-se emanar pequenos seres não visíveis a olho nu, os quais, aspirados pela boca ou nariz, acreditava-se causarem as febres palustres. Somava-se a essa crença uma outra: a de que répteis e batráquios podiam envenenar as águas e que este veneno, transmitido por inalação, causava febres. Certos sintomas da malária ou da febre amarela, constante em nossas terras litorâneas, tinham, aos olhos dos antigos, semelhança com os sintomas de envenenamento por picada de serpentes. O designativo “serpentária”, que eles emprestavam a tais formas graves da doença, como à febre amarela, é revelador desse tipo de mentalidade.

      As picadas mortais também podiam advir de marimbondos, na época denominados “vespas” ou “vespões: os infestadíssimos enxames de vespas, que fazem ninhos nas árvores, gostam de perseguir os gados e os viajores (sic), que as evitam; irritadas, não poupam as manadas de cavalos. Por causa do tamanho diverso e da discrepância da cor, são-lhes dados diversos nomes pelos indígenas (…) As maiores de todas são as copueruçu, que nidificam nas cavidades das árvores; a estas sucedem as uruperâna, depois as aiçâva, negras e pequenas, como também as tupeiçava, negras igualmente e as menores de todas. A ferroada das duas últimas é mais horrenda que a das outras. Todas são denominadas por um só nome, mariposas ou maribundas, pelos espanhóis”.

  • Texto de Mary del Priore. Extraído (com adaptações) de “Histórias da Gente Brasileira: Colônia (vol.1)”, editora LeYa, 2016.
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HFlorence

Queimada dos Campos , s.d. , Hercule Florence
Reprodução fotográfica autoria desconhecida

(Itaú Cultural)

4 Comentários

  1. sophia
    • Lindy
  2. Liliane de Paula Martins
    • Márcia

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