Na mesma época em que partiria em missão para outros estados europeus, Bonifácio casou-se. Contrariamente aos matrimônios da época, realizados dentro da igualha, e depois do exame acurado da situação econômica dos nubentes, a esposa escolhida foi uma jovem irlandesa, Narcisa Emília O´Leary. Morava com sua tia, Dona Isabel O´Leary e devia andar pelos vinte anos. O noivo tinha 26. A cerimônia se realizou a 31 de janeiro de 1790, no oratório da residência do Bispo de Mariana, freguesia de Nossa Senhora da Lapa, em Lisboa. Há quem tenha procurado a certidão deste matrimônio na Cúria Patriarcal de Lisboa e outros arquivos, sem jamais encontrá-la. E que afirme, também, que D. Frei Domingos da Encarnação Pontevél, dominicano, encontrava-se em Mariana, Minas Gerais. Não, em Lisboa. Ou que Narcisa Emília seria filha de mãe solteira, Isabel.
Apesar dos nomes não parecerem saxônicos, a presença inglesa e irlandesa em Portugal era antiga. Sobretudo no comércio de vinho e panos, mas, também na maçonaria. Havia a Loja dos Mercadores Ingleses, de predominância protestante e a Casa Real da Lusitânia, visitada por irlandeses, católicos, frequentadores da procissão do Corpo Santo e gozando de boa opinião entre religiosos católicos. Viria daí esse encontro nada comum? O casamento resultaria da “intrepidez” do noivo? Amor não era então um critério de escolha do cônjuge, e, tudo indica que a noiva fosse apenas uma figura discreta e amável, sem dinheiro ou projeção social. Bonifácio, amante de pandegarias e mulheres fáceis, teria lhe roubado a honra? Ou teria, segundo a tradição, sido um “casamento de benção”, aquele que se consumava com a simples promessa de realizar o matrimônio “in face ecclesie”, mais tarde? Que casamento empurraria o marido para fora da casa, instalada na Rua de São Bento, por dez anos? Pois, foi o que aconteceu. Mal contraíram núpcias, ele partiu. E nove meses depois, Narcisa Emília pariu. Reencontraria Narcisa Emília que, de setembro de 1796 a agosto de 1797, aqueceu-lhe as noites frias. A pequena Carlota, com seis anos, ficara na companhia da “tia” Isabel.
O ano era 1800, e, aos 37 anos, e de volta a Portugal, reencontrou seus dois irmãos, Antônio Carlos, de 27 anos e Martim Francisco, 25 anos, ambos formados em Coimbra respectivamente em Direito e Filosofia. Não só. Ali, também, iniciados à maçonaria. Antônio Carlos, inclusive, preso, quando estudante em 1794. Nada se sabe do reencontro destes irmãos, que não se viam, desde a primeira infância. Teriam se correspondido, ao longo de tantos anos? Silêncio, também, sobre o papel de Narcisa O´Leary na recepção ou cuidado dos cunhados. A reunião familiar não durou, pois em setembro de 1800, por decreto real, Antônio Carlos já se instalara no ofício de escrivão da Ouvidoria de São Paulo.
Em 1814, José Bonifácio foi diagnosticado por um médico como atacado por “um estado morboso”. Em meio a muitas viagens em Portugal, recebia correspondência de sua esposa. No mesmo ano, certamente preocupada com sua morbidez e bile, D. Narcisa lhe escrevia: “Meu querido Andrada, porque não voltas quanto antes para tua casa, para o seio de tua família que tanto e tanto o deseja?”. Ou, “indizível o prazer e a consolação que nos dão as tuas cartas, os progressos dos teus alívios e a esperança de em breve te vermos restituído ao seio da tua família e aos cuidados e desvelos de tua mulher e filhas que tanto te amam”. Em algumas cartas, ela assinava “A tua amante”. As cartas transpiravam afeição e cheiravam a roupa de cama limpa e sopa quente. O romance, porém, ficava reservado para as aventuras extraconjugais. Bonifácio não se iludia sobre sentimentos: “O amor romanesco é uma espécie de doença – a erotomania. Amantes romanescos não faltam; mas onde se pode achar o animal chamado marido romanesco?”.
– “As vidas de José Bonifácio” (Estação Brasil, 2019), de Mary del Priore.