Os escravos de ontem e de hoje

Por Márcia Pinna Raspanti.

 “Irmão de olho claro ou da Guiné
Qual será o valor? Pobre artigo de mercado
Senhor eu não tenho a sua fé, e nem tenho a sua cor
Tenho sangue avermelhado
O mesmo que escorre da ferida
Mostra que a vida se lamenta por nós dois
Mas falta em seu peito um coração
Ao me dar escravidão e um prato de feijão com arroz”

(Samba- enredo G.R.E.S. Paraíso do Tuiuti Compositor: Claudio Russo, Moacyr Luz, Dona Zezé, Jurandir e Aníbal)

Terminado o Carnaval, ficam algumas reflexões importantes. A escola carioca Porto do Tuiuti agitou a avenida e a mídia com um desfile que misturou História do Brasil e questões políticas e sociais. Em um lance ousado, a escola buscou no passado algumas explicações para o presente. A política sempre esteve presente no Carnaval. Os poderosos costumam ser alvos da crítica dos carnavalescos e foliões nos blocos, bailes e desfiles. A vice-campeã do carnaval do Rio de Janeiro, contudo, deu um passo à frente e, de forma bastante elaborada, conseguiu fazer uma ligação entre fatos históricos e políticos, diferenciando-se das demais.

O tema central foi a escravidão e suas consequências para a sociedade brasileira como um todo, e em especial, para os mais pobres. No século XIX, Joaquim Nabuco, em “Minha Formação” já alertava:

“A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil. Ela espalhou por nossas vastas solidões uma grande suavidade (…) povoou-o, como se fosse uma religião natural e viva, com seus mitos, suas legendas, seus encantamentos, insulflou-lhe sua alma infantil, suas tristezas sem pesar, suas lágrimas sem amargor, seu silêncio sem concentração, suas alegrias sem causa, sua felicidade sem dia seguinte”.

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(…) Com a escravidão não há governo livre, nem democracia verdadeira; há sempre um governo de casta e regime de monopólio. As senzalas não podem ter representantes, e a população avassalada e empobrecida não ousa tê-los”.

Em “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, Machado de Assis, por meio do narrador, mostra como o personagem, filho de família abastada, interagia com o escravo. ”Prudêncio, um moleque de casa, era o meu cavalo de todos os dias; punha as mãos no chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa de freio, eu trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na mão,fustigava-o, dava mil voltas a um e outro lado, e ele obedecia, – algumas vezes gemendo, – mas obedecia sem dizer palavra, ou, quando muito, um –‘ai, nhonhô!’ – ao que eu retorquia: -‘Cala a boca, besta!”.

Sem dúvida, a escravidão influenciou e ainda influencia as relações entre as classes sociais no Brasil. Gilberto Freyre, em “Casa-grande e senzala”, afirma que, mesmo após a abolição, a dinâmica social pouco mudou: “Não há brasileiro de classe mais elevada, mesmo depois de nascido e criado, depois de oficialmente abolida a escravidão, que não se sinta aparentado com o menino Brás Cubas na malvadez e no gosto de judiar dos negros. Aquele mórbido deleite em ser mau com os inferiores e como os animais é bem nosso (…)”.

A escravidão foi fator fundamental na formação do brasileiro, branco ou negro, como lembra Mary del Priore. “Como fazer uma criança obedecer a um adulto, como queria a professora alemã, Ina von Binzer, que vai, na segunda metade do século XIX, às fazendas do vale do Paraíba ensinar os filhos dos fazendeiros de café, quando esses distribuem ordens e gritos entre os escravos? E não eram apenas as crianças brancas que possuíam escravos. Crianças mulatas ou negras forras, uma vez os pais integrados ao movimento de mobilidade social que teve lugar na primeira metade do século XVIII, tinham também seus escravos”.

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Não há como negar que tais heranças ainda se fazem presentes na sociedade atual. Jessé Souza, em “A Elite do Atraso – da escravidão à Lava Jato” (editora LeYa, 2017), destaca que “o presente não se  explica sem o passado, e apenas a explicação que reconstrói a gênese efetiva da realidade vivida pode, de fato, ter poder de convencimento”.  O autor defende uma nova percepção do Brasil moderno e de suas raízes. “A escravidão e seus efeitos passam a ser o ponto central e não mais a pretensa continuidade com Portugal. Mais importante ainda, o problema central do país deixa de ser a corrupção supostamente herdada de Portugal para se localizar no abandono secular de classes estigmatizadas, humilhadas e perseguidas”.

O que chama a atenção no samba-enredo da Tuiuti é essa tentativa de mostrar as raízes históricas de algumas de nossas mazelas. A escravidão foi retratada como fator formador do país e não de forma idealizada, como costuma acontecer no mundo do entretenimento. Não faltaram alusões a fatos recentes e à figuras importantes da política brasileira, que naturalmente se tornaram os aspectos mais comentados do desfile. Entretanto, a meu ver, havia mais do que a simples ridicularização dos poderosos e de outros atores políticos.

E você, gostou do desfile?

  • Texto de Márcia Pinna Raspanti.

 

Temer de vampiro

O desfile também não poupou críticas ao cenário político atual . Foto: AFP (reprodução)

2 Comentários

  1. Sidney Leal

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