Desde o início do século XVIII, a prevalência de crianças mulatas pelas ruas ensejou crítica ácida das autoridades que aí viam o anúncio de uma população mestiça e ameaçadora. Com o aumento das alforrias ao final do século XVIII, cresceu o número de crianças perambulando, vivendo de pequenos expedientes e esmolas. Somava-se a tal condição, a instabilidade, bem como a rotatividade de grande parte da população paterna. Isto resultava em fogos, ou domicílios, com chefia marcadamente feminina.
O resultado? Uma estreita ligação, mesmo econômica, entre mães e filhos. Uns ajudando o sustento dos outros. Mas, também, entre senhoras, – brancas, multas ou negras – e seus pequenos cativos. Em Sabará, 1762, Vitória do Nascimento, preta forra, mãe solteira, além de possuir crianças escravas, criava uma “enjeitada”. Viviam todos de costurar para fora. Nas inúmeras vendas que se espalhavam por pequenas ou grandes aglomerações, não era de estranhar encontrar crianças fazendo pequenos serviços. Os mesmos, aliás, que se executavam em toda parte. Com o adestramento completado entre nove e doze anos, qualquer menino ou menina participava às tarefas cotidianas de limpar, descascar, cozinhar, lavar, alimentar os animais domésticos, remendar roupas, trabalhar madeira, pastorear, estrumar a plantação, regar a horta, pajear crianças menores da própria casa ou dos vizinhos, levar recados ou carregar mercadoria. Como bem diz um memorialista, era o dia inteiro: “Joãozinho vai buscar isto, Joãozinho vai buscar aquilo! ”.
Alguns, inclusive, já teriam se iniciado em variados ofícios. Escravos ou livres pobres podiam ser aprendizes de sapateiros, costureiras, torneiros, carapinas, jornaleiros. Vários deles exerciam atividades domésticas, complementares às realizadas por suas mães. Filhos de doceiras descascavam amendoim, coletavam ovos, colhiam frutas, transportavam feixes de cana na cabeça. Filhos de vendedoras de tabuleiro portavam tripés, oferecendo, aos gritos, biscoitos de goma, sequilhos e broa. Outras crianças vendiam os produtos feitos em casa por suas genitoras, avós ou senhoras: velas de carnaúba, canjica, comida de angu, rendas, flores de papel. A tradição musical de certas regiões como Minas Gerais, incentivava a participação de crianças como pequenos músicos e cantores – houve mesmo sopraninos – nas festas religiosas, tão comuns nestes tempos. Conta-nos Julita Scarano que “donos de escravos recebiam pagamentos por cativos “moleques” que participassem de bandas ou de grupos profissionais”. E a música podia ser um ótimo ganha-pão. Em caso extremo, os pequenos mendigavam, como ocorreu com os filhos de certo Antônio da Silveira, em Ouro Preto, 1753: “Muitas vezes estão a andar as crianças da dita casa em algumas casas, alguma coisa para se comer em casa…”, revela um documento.
Muito deste precoce trabalho infantil era cadenciado pelo sofrimento. Entre os filhos de cativos e brancos e mulatos pobres, pequenas humilhações, castigos físicos e outros agravos marcavam a iniciação compulsória à sobrevivência.
- Texto de Mary del Priore.
Mães e filhos vendiam alimentos nas ruas (IMS).