Tortura: uma mancha na História do Brasil

A tortura é uma forma de dominação sobre o corpo, através da produção de uma certa quantidade de sofrimento que se possa, se não medir exatamente, ao menos apreciar, comparar e hierarquizar“, Michel Foulcault, em “Vigiar e Punir”.

A tortura é uma prática tão antiga quanto cruel. Foi amplamente utilizada (e continua a ser), desde os tempos mais remotos, como forma de obter confissões, punir ou mesmo como vingança. Na Idade Média, a Inquisição supliciou milhares de “pecadores”. Os tribunais civis dos estados europeus também faziam uso de tais métodos na mesma época.

E no Brasil? Desde quando convivemos com este mal? O historiador Jacob Gorender, em “Combate nas Trevas” -, obra que analisa a luta armada durante a ditadura militar-, afirma com amarga ironia:

Se houvesse prêmio Nobel para os torturadores, estou certo de que os suecos seriam atentos às credenciais dos candidatos brasileiros. (…) Talvez o pau de arara não tenha sido inventado no Brasil, porém se nacionalizou mais do que o futebol. (…) O processo de imobilização do pau de arara já era utilizado pelos feitores de escravos há dois séculos“.

Certamente, os escravos sofreram sevícias e castigos físicos violentos de inúmeras formas. Tanto que os religiosos procuravam aconselhar os senhores a evitar excessos na hora das punições. Vejamos o que dizia o jesuíta Jorge Benci (1700):

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“(…) Tiranizados devera dizer, ou martirizados; porque ferem os miseráveis, pingados, lacrados, retalhados, salmourados, e os outros excessos maiores que calo, mais merecem nome de martírios que de castigos”.

O jesuíta Antonil, ou João Antônio Andreoni, em “Cultura e Opulência do Brasil” (1711), advertia:

Aos feitores de nenhuma maneira se deve consentir o dar couces, principalmente na barriga de mulheres que andam pejadas (grávidas), nem dar com pau nos escravos (…). Amarrar e castigar com cipó até correr sangue e meter no tronco, ou em uma corrente por meses (…) isto de nenhum modo se há de sofrer”.

Ou ainda: “Castigar com ímpeto, com ânimo vingativo, por mão própria e com instrumentos terríveis e chegar talvez aos pobres com fogo ou lacre ardente, ou marcá-los na cara, não seria para se sofrer entre os bárbaros, muito menos entre cristãos católicos”.

Note-se que os religiosos não eram contrários a castigar os escravos quando estes cometessem alguma falta, o que eles condenavam eram os “excessos”.

Jean-Baptiste Debret descreveu, horrorizado, a tortura de um escravo no século XIX:

“(…) O infeliz depois de ter ficado com as mãos amarradas, sentou sobre os calcanhares, passando os braços por fora das pernas, para permitir que o feitor enfie sob suas panturrilhas um pau que serve de entrave; em seguida, facilmente derrubada com um pontapé; a vítima mantém uma pose imóvel que propicia o feitor a saciar a sua ira (…). As duas tiras de couro da ponta do chicote arrancam no primeiro golpe a epiderme, e assim tornam mais dolorosa a continuação do castigo”.

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A tortura, portanto, é prática constante no Brasil desde a colonização, atingindo o ápice do absurdo – por ser institucionalizada – nos períodos ditatoriais. No governo Vargas, presos sofriam diversos suplícios: maçarico, que queimava e arrancava pedaços de carne; estiletes de madeira que eram enfiados por baixo das unhas; alicate para apertar e esmagar testículos e pontas de seios; a “cadeira americana”, que não permitia que o preso dormisse; e a máscara de couro; além de queimaduras com pontas de cigarros e espancamentos. Ficou célebre o caso do alemão Harry Berger, membro do Partido Comunista, defendido pelo jurista Sobral Pinto com base na lei de proteção aos animais. Os acusados eram processados e julgados pelo Tribunal de Segurança Nacional, criado logo depois do levante comunista de 1935, antes mesmo do Estado Novo (1937-45).

Na ditadura militar (1964-85), a tortura também se tornou política de Estado. Vejamos o terrível relato de Jacob Gorender, sobre o tratamento que recebeu no DEOPS, em 1970:

“A função começou por uma dose choques elétricos (…). Depois, pontapés e telefones (tapas atordoantes e simultâneos, nos dois ouvidos). Chegou a vez do pau de arara. De pés e mãos atados por cordas, seguro à trave de face para cima, eu ia recebendo choques elétricos em várias partes do corpo, queimaduras nas plantas dos pés, telefone. Fizeram o afogamento: introdução de água nas narinas por meio de um funil (…)”.

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Hoje, passadas mais de duas décadas do final da ditadura, a tortura ainda é prática constante nas delegacias, quartéis e prisões. Houve casos recentes de inocentes que confessaram crimes por não suportar mais os suplícios a que eram submetidos. Uma triste marca na História do Brasil, que devemos encarar com honestidade, se quisermos combatê-la. O objetivo deste texto não é esgotar um assunto tão amplo quanto este, mas levar à reflexão. – Márcia Pinna Raspanti.

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“Feitores castigando negros”, de Debret.

 

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