Luvas: elitismo ou igualdade social?

 

 Hoje, só usamos luvas no Brasil em dias muito frios. No passado, porém, as luvas eram obrigatórias para homens e mulheres. Não havia elegância que resistisse às mãos descobertas, nuas. Nas primeiras décadas do século passado, a moda começou a dar cada vez menos importância a este item do vestuário. Tal tendência provocou uma reação curiosa por parte das mulheres. A Revista Feminina, em 1920, traz um artigo em que a autora incita as mulheres a desobedecerem tal modismo e acusa os preconizadores das mãos nuas de serem reacionários e elitistas. Vejamos a argumentação da escritora:

“essa moda antidemocrática (das mãos nuas), criadora de uma irritante desigualdade entre a mulher que trabalha, mutilando as suas pobres mãos, e, a ociosa, que as poupa e resguarda de todos os perigos, para afrontar com sua beleza pecaminosa, as santificadas (mulheres trabalhadoras) no cumprimento de suas atividades cotidianas”.

        A autora se revolta contra a nova moda de andar sem luvas, porque isto revelaria as diferenças entre mulheres de diversas classes sociais. Sabemos que o trabalho doméstico naqueles tempos era duríssimo, ninguém conseguiria fazê-lo e ainda preservar as mãos macias, suaves e jovens. Muitas mulheres mais pobres também trabalhavam “para fora”, lavando roupa, passando, cozinhando, limpando as casas. Só as mais ricas, com dinheiro para pagar serviçais, poderiam ter mãos bonitas. A escritora fica indignada com esta norma que somente reforçaria os sinais exteriores dos grupos sociais privilegiados, distanciando mais ainda ricos e pobres. É uma maneira surpreendente de ver o assunto.

       Vamos ao outro lado da questão. Lendo “A Era dos Impérios (1875-1914)”, de Eric J. Hobsbawn, me deparei com um comentário do historiador inglês – sempre um arguto crítico dos problemas sociais – sobre as luvas e o nascimento do movimento operário socialista, na Europa. O autor descreve as cidades industriais que surgiram como “cogumelos”, na segunda metade do século XIX. Nestes centros, a maioria da população era constituída pelos trabalhadores fabris que conviviam com pessoas empregadas no setor terciário (comércio e serviços). Os burgueses ou pessoas com maior renda que não tivessem postos de chefia nas fábricas, eram raros nestas cidades, segundo o autor. Vejamos como Hobsbawn classifica os profissionais que “atendiam às modestas necessidades dos pobres”:

“Em Bochum (cidade dedicada à mineração e à indústria pesada), a produção incluía, sem contar com os habituais padeiros, açougueiros e cervejeiros, algumas centenas de costureiras e 48 modistas, mas apenas oito lavadeiras, seis fabricantes de chapéus e gorros, oito peleteiros, e – o que é significativo – nenhuma pessoa que fabricasse o símbolo característico do status da classe média e alta, as luvas“.

      Considerando a pobreza do lugar e também o reduzido número de lavadeiras, podemos concluir, sem medo de errar, que as mulheres de Bochum tinham as mãos bastante castigadas pelas tarefas domésticas e pelo trabalhos nas fábricas. Será que elas não prefeririam usar luvas para esconder o estado de suas mãos? Será que, em meio a todo aquele ambiente de miséria e de ideias socialistas, elas não reivindicariam um pequeno luxo? Ou um pouquinho de vaidade? Com certeza as lideranças não se preocuparam com isto. Nem elas talvez tivessem tempo ou disposição para pensar nestas “coisinhas” fúteis. Mas, se alguém tivesse perguntado…Não sei, não. 

            Achei muito interessante a comparação dos dois pontos de vista sobre um tema aparentemente banal: para uns, as luvas poderiam tornar as pessoas um pouco mais iguais, na aparência, pelo menos; para outros, simbolizavam as injustiças sociais. Para finalizar, vou transcrever um trecho da revista semanal “O Espelho”, publicada entre 1859-1860, no Rio de Janeiro, como um espaço dedicado à literatura, modas, indústrias e artes. A publicação, que infelizmente teve vida curta, reunía colaboradores como Machado de Assis, Francisco Eleutério de Souza, Moreira de Azevedo, Macedo Júnior e Casimiro de Abreu (eventualmente). É um delicioso panorama da vida cultural e das frivolidades do Segundo Reinado. Vejam a crônica de Moreira de Azevedo sobre “As Luvas”.

    “Não há moça de mão delicada, nem rapaz do tom, que deixe de trazer sua luva de pelica. É possível em um baile encontrar-se uma moça com os braços descobertos, com cabelo sem enfeite, com colo despido, com vestido simples, porém com as mãos nuas, sem luvas, isso não é cousa que se vê, nem em qualquer casa em que haja uma simples contradança. A luva pois é tão necessária para quem vai ao baile, como é preciso o lenço para quem tem defluxo”. 

          Escolhi este autor para fechar o post por causa da defesa deliciosamente fútil e inocente do acessório. M. de Azevedo não se envergonha do tom abertamente elitista de sua crônica. Eram os tempos do Romantismo, em que as belas mocinhas pobres podiam casar com os dândis ricos, escondendo as mãos calejadas sob luvas delicadas. Só para esclarecer os mais desatentos: isto ocorria, sejamos realistas, apenas na imaginação dos escritores e das almas sonhadoras, mas, o texto não foi escrito para acabar com as ilusões das leitoras do “belo sexo”. – Márcia Pinna Raspanti

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Damas francesas no início do século XIX: luvas eram essenciais.

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