No século XIX, a prática de sepultamentos dentro das igrejas passou a ser associada às crescentes epidemias. Segundo as teorias médicas da época, o mal era um só: a presença de gases miasmáticos e nocivos no ar que se respirava, produzidos por matéria animal ou vegetal em decomposição. As sepulturas deveriam, em função disto, ser eliminadas do interior e das proximidades das igrejas. A tese de doutorado de Manoel Maurício Rebouças, defendida na Faculdade de Paris em 1831, reforçava os argumentos dos higienistas brasileiros. Intitulada “Dissertação sobre as inumações em geral e seus desastrosos resultados”, ela reunia documentos tidos como fidedignos, pois envolviam pessoas de caráter inquestionável, como padres e médicos.
A solução não foi imediata e houve reações. Em 1835 a Assembleia Provincial da Bahia recebeu proposta de uma empresa funerária. Defendendo argumentos higienistas, que se opunham aos sepultamentos dentro da igreja, comuns na época, a Companhia do Cemitério reivindicava o monopólio dos enterros, em Salvador, durante trinta anos. A proposta foi aceita e o contrato, assinado. Mas, apesar do apoio do arcebispo, muitos padres, frades e, sobretudo, as irmandades se opuseram com vigor à ideia. Queriam que os fiéis continuassem a ser enterrados nas igrejas. A Cemiterada, como ficou conhecida a revolta, foi liderada pelas Irmandades de Salvador. Principais agentes da devoção pública, na qual se misturavam tradições portuguesas e africanas frente à morte, elas lograram uma vitória completa. No dia 25 de outubro de 1836, a multidão destruiu o Campo Santo inaugurado há três dias. A revolta contou com a população em geral e a complacência da polícia. A Assembleia Provincial não só cancelou o contrato como consentiu que a forma tradicional de sepultamento prevalecesse por mais vinte anos.
Não faltou nem quem argumentasse em favor do “mau cheiro”. Luiz Gonçalves dos Santos, conhecido como Padre Perereca, contrapunha a sensibilidade olfativa dos “melindrosos modernos” a dos católicos piedosos, afirmando: “o incômodo passageiro do mau cheiro dos defuntos era um ato de fé”! Mas, à época, até o som dos sinos que antes anunciavam um enterro ou a passagem de um viático passaram a ser perseguidos. Afinal, seu som melancólico podia fazer mais mal aos já doentes!
A partir de 1850, criou-se cemitérios extramuros, mudança acelerada pela alta mortalidade provocada pelas epidemias de febre amarela e cólera. Proibiram-se os sepultamentos nas igrejas de importantes cidades litorâneas, como Salvador e Rio de Janeiro. Minas Gerais resistiu e em localidades tradicionalmente católicas, como Ouro Preto, São João Del Rei e Tiradentes, alguns templos hospedam túmulos até hoje. Por “razões de higiene”, o Governo Imperial afastou os cemitérios dos centros das cidades, dos distritos e das vilas.
Como diz a historiadora Cláudia Rodrigues, os mortos que antes compartilhavam do espaço dos vivos dos vivos, começam a se afastar. Essa mudança de atitudes evidenciava os traços do desenvolvimento de uma concepção individualista – sinal dos tempos modernos – que valorizava a vida e os vivos. A saúde física deveria predominar sobre a saúde espiritual. Aos mortos cabia ficar em seu lugar: longe! Esse afastamento do espaço urbano contribuiu para reduzir a centralidade da Igreja Católica na administração do assunto. Ao coibir o enterro indiscriminado em volta das igrejas e das capelas, o poder público imperial amenizava, aos poucos, o “exclusivismo” católico sobre o espaço sagrado dos mortos.
Tal mudança impactava também a prática dos cortejos e acompanhamentos fúnebres. Eles se reduziram. As mortalhas, antes símbolo de devoção a determinados santos, já não cumpria sua função simbólica. E muitos viajavam para o Além com roupas diárias, “vestes seculares” ou “roupas de uso”. Agora, no lugar do padre, o médico e o notário. Nos testamentos, invoca-se menos a intercessão de anjos, santos, Cristo ou Nossa Senhora como se as demonstrações de preocupação com os destinos da alma importassem menos. Somente a encomendação do defunto e o velório continuavam “em casa”. Privatizando um espetáculo que antes reunia à beira da cama do moribundo, até desconhecidos vindos da rua, acompanhantes do padre com o viático. Era o início do fim da familiaridade entre vivos e mortos.
- Mary del Priore. “Histórias da Gente Brasileira: Império (vol.2)”, editora LeYa, 2016.

Caspar David Friedrich : Cemitério de um claustro sob a neve
Todo esse texto poderá ser lido, pesquisado e apurado detalhadamente no livro “A Morte é uma festa” do autor João José Reis.
Érica, esse texto é de Mary del Priore, “Histórias da Gente Brasileira: Império (vol.2)”. Sobre a obra fundamental de João José Reis sobre o assunto, temos o seguinte artigo: