Tempo de amar ou tempo de unir?

          “Minha querida filha e amiga do coração”, “Cada vez lhe quero mais, se é possível”, “Meu bem da minh´alma”: muitas foram formas de dizer o amor, no passado. Muitos foram os amores e alguns registraram mais marcas, do que outros. Quem não ouviu contar sobre a paixão que uniu, nos primeiros tempos da Colônia, Paraguaçu e Caramuru? Ou não ouviu falar dos afetos, cantados em prosa e verso, de Marília que roubou, entre suspiros, “o sincero coração de Dirceu”, o inconfidente Tomás Antônio Gonzaga? Quem não se lembra da tórrida relação de D. Pedro I com a Marquesa de Santos, de cuja lembrança o Museu Imperial de Petrópolis guarda, cuidadosamente, um insólito registro: um bilhete no qual o enamorado governante rabiscou seu próprio pênis ejaculando? Ou a sólida união entre Chica da Silva e o contratador de diamantes João Fernandes de Oliveira, que deu a ambos família extensa e prestígio local.

           Mas em vez de “tempo de amar”, melhor seria dizer, tempo de se unir a alguém. E de se juntar, para sobreviver. Tempo de formar família através de uma união estável. Pois essa foi a tônica dos casais durante séculos. Entre nós, durante mais de quinhentos anos, os casamentos não se faziam de acordo com a atração sexual recíproca ou paixão. Eles mais se realizavam por interesses econômicos ou familiares. Entre os mais pobres, o matrimônio ou a ligação consensual era uma forma de organizar o trabalho cotidiano. Não há dúvidas de que o labor incessante e árduo não deixasse muito espaço para a paixão sexual. Sabe-se que entre casais, as formas de afeição física tradicional – beijos e carícias – eram raridade. Para os homens, contudo, as chances de manter ligações extraconjugais, eram muitas.

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          O europeu trouxe para o Novo Mundo uma maneira particular de organizar a família. Esse modelo, constituído por pai e mãe “casados perante a Igreja”, correspondia aos ideais definidos pelo catolicismo. Apenas dentro deste modelo seria possível educar os filhos, movimentando uma correia de transmissão pela qual passariam, de geração em geração, os valores do Ocidente cristão.

           Mas será que o europeu conseguiu impor esse tipo de família ao Novo Mundo? Inicialmente, foram poucos os homens que trouxeram mulheres e filhos. Entre os donatários, apenas dois: Duarte Coelho, em Pernambuco e Pero de Campos Tourinho, em Porto Seguro. Em 1549, Padre Nóbrega comentava as uniões informais e miscigenação: “Todos me escusam que não têm mulheres com quem casem, e conheço eu que casariam, se achassem com quem”. O jesuíta tinha solução: mandar prostitutas de Portugal para o Brasil, “ainda que fossem erradas, se casarão todas muito bem”! Para os oficiais do governo, a rainha D. Catarina mandou “donzelas órfãs de nobre geração”. Como o contingente de mulheres brancas continuou baixo por muito tempo, os colonos escolhiam as índias como concubinas, com quem viviam “segundo os costumes da terra”.

            E Nóbrega chocado: “Não há nenhum que deixe de ter muitas negras (leia-se índias) por mancebas das quais estão cheios de filhos e é grande mal”. Entre colonos solteiros ou casados que tinham suas mulheres em Portugal não havia problema em “abarregar-se com suas escravas gentias”. Os concubinatos incomodavam mais à Igreja, do que às autoridades. Mas eles foram responsáveis pelas primeiras uniões e uma geração de mamelucos. Dele, nasciam os “bastardos tidos com brasilas”, o termo, no século XVI, significando ao mesmo tempo ilegítimo e mameluco. As crianças nascidas destes “amancebamentos” eram chamadas “curibocas”, na língua tupi.

  • Texto de Mary del Priore, “Histórias da Gente Brasileira: Colônia (vol. 1), editora LeYa, 2016.
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habitantescjulião

Índios, de Carlos Julião.

 

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