Família e famílias

O colonizador europeu trouxe para o Novo Mundo uma maneira particular de organizar a família. Esse modelo, constituído por pai e mãe “casados perante a Igreja”, correspondia aos ideais definidos pela Igreja católica no Concílio de Trento, em 1545. Ele serviu como instrumento na luta contra a Reforma protestante e em favor da difusão do catolicismo no Novo Mundo. Apenas dentro desse tipo de família – a sacramentada pelo matrimônio – seria possível educar os filhos segundo os preceitos cristãos, movimentando uma correia de transmissão pela qual passariam, de geração em geração, as normas e os valores da Igreja católica.

A Igreja católica procurava assim universalizar suas normas para o casamento e a família. A mulher, nesse projeto, era fundamental. Cabia-lhe ensinar aos filhos a educação do espírito: rezar, pronunciar o santo nome de Deus, confessar-se com regularidade, participar de missas e festas religiosas.

Desde a chegada dos portugueses à costa brasileira, a instalação das plantações de cana-de-açúcar e a importação de milhões de escravos africanos para trabalhar nos engenhos que se espalharam pelo litoral, a mulher no papel de companheira, mãe ou filha se destacou. No início, não se tratava exatamente da mulher branca. Caramuru, na Bahia, unido a Paraguaçú, e João Ramalho, fundador de Santo André da Borda do Campo, casado com Mbici ou Bartira, deram o exemplo. A escassez de europeias e a presença de indígenas favoreceram a miscigenação e os concubinatos. Padre Nóbrega chegou a pedir que enviassem de Portugal órfãs e prostitutas para povoar a nova terra.

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A dispersão dos núcleos de povoação reforçou as funções da família, no interior da qual a mulher era mantida enclausurada. Ela era herdeira das leis ibéricas que a tinham na conta de imbecilitas sexus: incapaz, como as crianças ou os doentes. Só podia sair de casa para ser batizada, enterrada ou se casar. Sua honra tinha de ser mantida a qualquer custo. O casamento, quando havia bens a se preservar, era organizado para manter a paz entre vizinhos e parentes, esses últimos sendo os escolhidos com mais frequência como maridos.

Pobre ou rica, a mulher possuía, porém, um papel: fazer o trabalho de base para todo o edifício familiar: educar os filhos segundo os preceitos cristãos, ensinar-lhes as primeiras letras e atividades, cuidar do sustento e da saúde física e espiritual deles, obedecer e ajudar o marido. Ser, enfim, a “santa mãezinha”. Se não o fizesse, seria confundida com um “diabo doméstico”. Afinal, sermões difundiam a ideia de que a mulher podia ser perigosa, mentirosa e falsa como uma serpente. Pois ela não havia conversado com uma no paraíso? O modelo ideal era Nossa Senhora. Modelo de pudor, severidade e castidade.

A soma dessa tradição portuguesa com a colonização agrária e escravista resultou no chamado patriarcalismo brasileiro. Era ele que garantia a união entre parentes, a obediência dos escravos e a influência política de um grupo familiar sobre os demais. Tratava-se de uma grande família reunida em torno de um chefe, pai e senhor forte e temido, que impunha sua lei e ordem nos domínios que lhe pertenciam. Sob essa lei, a mulher tinha de se curvar.

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Instalada geralmente em engenhos, plantações ou fazendas, grandes famílias se concentraram na área rural até o século XVIII. O chefe cuidava dos negócios e possuía absoluta autoridade sobre a esposa, os filhos, os escravos, empregados e agregados. Sua influência era enorme e se estendia, muitas vezes, a famíliassemelhantes, localizadas em regiões próximas. A família patriarcal foi assim resumida: “pai soturno, mulher submissa, filhos aterrados”.

A singularidade da família patriarcal é que ela não se restringia ao trio mencionado. Pai, mãe e filhos constituíam apenas o núcleo central. A família incluía também os parentes, os filhos ilegítimos ou de criação, afilhados, empregados e amigos com quem se nutria uma relação de compadrio – isto é, padrinhos ou madrinhas –, além de ,agregados e escravos. Laços de dependência e solidariedade uniam seus membros.

A Igreja católica explorou as relações de dominação que presidiam o encontro de homem e mulher dentro de casa, incentivando a última a ser exemplarmente submissa. A relação de poder já implícita na escravidão se reproduzia nas relações mais íntimas entre marido e mulher, condenando esta a ser uma escrava doméstica, cuja existência se justificasse em cuidar da casa, cozinhar, lavar a roupa, servir ao chefe de família com sexo, dando-lhe filhos que assegurassem sua descendência e servindo como modelo para a sociedade com que sonhava a Igreja.

O dia a dia das famílias senhoriais transcorria em meio a grande número de pessoas. As mulheres pouco saíam de casa, empregando o tempo em bordados e costuras, ou no preparo de doces, bolos e frutas em conserva. Sentadas em esteiras no chão, as pernas cruzadas, vestidas simplesmente com camisolões e chinelos, passavam as horas em trabalhos manuais. À sua volta, crianças brancas e escravas engatinhavam e brincavam juntas.

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Embora se reconheça a importância desse modelo, outros tipos de família se multiplicaram na mesma época: pequenas; de solteiros e viúvos; de mães e filhos que viviam sem companheiros nem pais; de escravos. Ou seja, também no passado, a noção de família variou de acordo com os diferentes grupos sociais e as diversas regiões do país. Os escravos, homens forros ou livres, viviam de um jeito; os poderosos da elite senhorial viviam de outro. Igual mesmo só o hábito de integrarem, muitas vezes, amigos e parentes à família: os agregados.- Mary del Priore

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