Inúmeros relatos de missionários e viajantes contaram sobre os costumes indígenas. Na pena de Soares de Souza, por exemplo, o leitor há de encontrar verbetes descritivos sobre “costumes e trajes”, “do modo de comer e beber”, “de como curam suas enfermidades”, da “luxúria”, de seus casamentos, antropofagia e linguagem – enfim, um catálogo dos usos e costumes de várias nações dos caetés aos ubirajaras. Esses textos ora enfatizam a singularidade de suas culturas, ora retratam a aculturação que resultou do contato com o homem branco e o consequente processo de integração, exploração e destruição das populações indígenas. Como se vestiam ou enterravam seus mortos, o que comiam e a quem se uniam, como guerreavam ou passavam o tempo? As tribos mais comentadas são aquelas com as quais foram cruzando ao longo da ocupação: índios de aldeias, vivendo de suas lavouras, como os caiapós ou os parecís, ou índios de corso, ferozes e excelentes cavaleiros, como os paiguazes ou aicurus, deixaram seu retrato na pena de pato dos brancos.
E era uma pena seletiva. Afinal, os bons eram aqueles “índios de assento”, sedentários, capazes de cultivar mandioca, milho, feijão, batata e ananases. E também de fazer belas “obras de pedra” como as insígnias que portavam os caciques. Os sinais negativos eram emitidos sobre as nações itinerantes. Como deles disse padre Martinho de Nantes, capuchinho missionário, na sua Relação de uma missão no rio São Francisco, gente de “vida animal, grosseira até nos alimentos, quando se contentavam com as coisas que encontravam, sem que de ordinário as cultivassem e comendo sem preocupação de limpeza”. “O seu uso de pelejar uns com os outros é , flechas e porretes e comem também carne humana”, completava em 1723 o capitão Antônio Pires de Campos, que os observou ao longo de uma viagem a Cuiabá.
Padre Simão de Vasconcellos os distinguia entre “índios mansos” e “índios bravos”, os primeiros sendo aqueles que “com algum modo de república (ainda que tosca), são mais tratáveis e perseveráveis, entre os portugueses, deixando-se instruir e cultivar. Chamamos bravos os que, pelo contrário, vivem sem modo de república, são intratáveis e com dificuldade se deixam instruir”.
“Instrução” significava a substituição de suas tradições por aquelas dos brancos: batizar os filhos, casar na igreja, evitar a bigamia, andar vestido, aprender a ler, escrever, contar e mesmo cantar, pois muitos deles tinham, segundo registros, excelentes vozes. Cobrir-se era considerado sinal de adesão: “Já agora o gentio que habita entre nós anda coberto, os machos com uns calções, as fêmeas com uns camisões de linho muito alvo e os cabelos enastrados com fitas de diferentes cores, costumes que introduziram entre eles com assás de trabalho os padres da Companhia (de Jesus) porque não havia quem os fizesse apartar de sua natureza, que os incitava a andarem nus”, dizia Gandavo.
Tratava-se de uma adesão nem sempre bem-sucedida que inspirava ao padre Anchieta tiradas de muito humor: “De ordinário andam nus e, quando muito, vestem alguma roupa de algodão ou de pano baixo, e nisto usam de primores a seu modo, porque um dia saem com gorro, carapuça ou chapéu na cabeça e o mais nu; outras vezes trazem uma roupa curta até a cintura sem mais outra coisa. Quando casam vão às bodas vestidos, e à tarde se vão passear somente com o gorro na cabeça sem outra roupa, e lhes parece que vão assim mui galantes.”
Empenhados em imprimir a marca da metrópole na Colônia, os jesuítas tentavam transformar os nativos em cristãos. Essa era a missão. A recém-fundada Companhia de Jesus, em vez de cristianizar mouros em Jerusalém, preferiu fazê-lo na América. O culto ao Menino Jesus e à Sagrada Família os fez focar nos “culumins”, nos “meninos da terra”. Era preciso evitar “os adultos a quem os maus costumes de seus pais têm convivido em natureza e cerram os ouvidos para não ouvir a palavra de salvação”.
Não por acaso, Nóbrega fundava em São Vicente, em 1554, o primeiro colégio de catecúmenos que houve no Brasil, “ordenando que fosse confraria do Menino Jesus”. Ali, juntaram-se alguns órfãos e meninos abandonados vindos de Lisboa, mestiços da terra e “indiosícos”. Esses eram em geral egressos de uniões entre mães índias e pais portugueses. Ou vinham a pedido de algum “principal” ou cacique. O sentimento de valorização da criança enquanto ser cheio de graça e vulnerabilidade não estava ausente do coração dos jesuítas que viam nas crianças “inocentes, mui elegantes e formosos”. Ou, ainda, “muchachos que quase criamos aos nossos peitos com o leite da doutrina cristã”.
- Texto de Mary del Priore. “História da Gente Brasileira: Colônia (vol.1)”. Editora LeYa, 2016.
“Habitantes da terra”, de Carlos Julião.
Amo sua forma de escrever a respeito de História. Parabéns. Tive a honra de ouvi-la e conhece-la pessoalmente. Um abraço