A “solteirice” está na berlinda. Mulheres e homens tentam entender porque tanta gente está sozinha nos dias de hoje. Tenho lido vários artigos em que se especula qual seriam as razões para a solidão, principalmente a feminina. Alguns acreditam que a independência das mulheres anda assustando o sexo oposto; outros dizem que a chatice e a arrogância são as maiores inimigas das solteiras; há quem diga que a culpa é dos homens – mas estes se defendem com todas as forças e bons argumentos. Afinal, será que a História pode nos ajudar a entender a complexidade das relações afetivas e amorosas? Vamos ver.
É importante lembrar que as solteiras sempre sofreram com o preconceito e a discriminação. Nos tempos coloniais, a mulher tinha um papel importante e bem definido na sociedade que se formava: esposa e mãe, de preferência com uma prole bem extensa. Quem não se adequasse a este modelo era mal vista. A promiscuidade sexual era tão condenada quanto o celibato. Uma mulher que não usufruísse de uma vida sexual regrada – dentro do casamento obviamente- poderia sofrer com doenças terríveis: melancolia, histeria, ninfomania, febres e achaques. Frágeis, as mulheres, diferentemente dos homens, tinham a necessidade física de procriar.
Mary del Priore, em “ Ao Sul do Corpo”, destaca que as “solteiras do mundo, vítimas ou metáfora para o desregramento, viviam no avesso das mulheres que alegavam ‘honra, recato e honestidade’, como faziam as ‘boas e virtuosas mulheres’. As ‘santas e honestas’ distinguiam-se daquelas que eram ‘públicas amancebadas’, marcadas pela ‘negra honrinha’, ou das ‘donzelas embiocadas, maltrajadas e malcomidas’, descritas pelo poeta colonial Gregório de Matos. Ausente explícita da documentação histórica em que os protagonistas são mais eloquentes, a luxúria, como personificação de um mal e de uma doença, sobrevivia aninhada no preconceito contra a solteira, a viúva, a donzela, variando entre estas o grau de caricatura. As primeiras eram malvistas porque lascivas, e a última porque melancólica”.
Não havia muitas alternativas, como vemos. Se não fosse casada e honrada, a mulher seria classificada como prostituta ou como solteirona enrustida. Na mesma obra, Mary afirma que na colônia onde os casamentos misturavam-se a concubinatos e amancebamentos, a rejeição a celibatários que viviam fora de ligações institucionais ou consensuais era frequente. “A desigualdade dogmática imposta pela Igreja entre o homem e a mulher casados estendeu-se às mulheres, que se dividiam entre certas e erradas. Assim, tanto as casadas quanto as solidamente concubinadas confinavam-se mais à família e à casa, para diferenciarem-se da outra, solteira e mundana, que ‘usasse mal de si’. O discurso sobre o perigo e os pecados das luxuriosas permitiu um melhor confinamento da mulher enquadrada e um maior isolamento daquela desregrada, valorizando o papel do casamento como mediador entre umas e outras”.
A situação não muda muito no século XIX e nem no início do XX. Em uma época em que havia mais homens que mulheres, aquelas que não conseguiam um companheiro eram vistas com desconfiança. Deveria haver algo de muito errado com elas…”Numa sociedade em que as mulheres, nasciam, cresciam e casavam, para ter filhos, a donzelona era aquela que não cumpria as regras. Que se colocava fora do lugar certo. Que falhara. E tudo isso, com tanta discrição, que era como se não existisse. Quanto mais idade, pior. Uma mulher de trinta anos era considerada ‘moça velha’ e, portanto, não mais ‘amável’. Não sendo capaz de inspirar um casamento, ela também não impunha respeito”, conta Mary del Priore, em “Matar para não morrer”. A partir dos 22 anos, quem não casava era estigmatizada como “moça-velha”.
A sociedade era cruel com essas mulheres: elas se tornavam alvo de zombarias e desprezo. “Com o tempo escorrendo na ampulheta da vida, elas davam adeus ao riso, às brincadeiras, aos amantes sonhados e à beleza. Muitos juristas concebiam o celibato como um estado indecente. E os médicos, a porta aberta para uma grave doença: a histeria”, diz a historiadora. Uma opção era se tornar professora, o que era considerado um trabalho digno e decente para uma mulher sozinha. “A professora solteirona era de poucos sorrisos. Sua afetividade ficava escondida. Severidade e secura, óculos, coque, roupas escuras, pêlos no rosto: as caricaturas dos jornais as representavam assim”, completa Mary.
Nas primeiras décadas da República, o celibato passou a ser associado ao feminismo, que, por sua vez, era ligado a feiura e masculinização. “No entender da imprensa da época, quem não era agraciada com beleza física suficiente para se casar vingava-se aderindo aos movimentos de emancipação. O medo da mulher inteligente, preparada, da que lia ou escrevia era visível. A emancipação era percebida nos mais diversos setores políticos e sociais como ameaça à ordem estabelecida e ao domínio masculino”, diz a historiadora em “Conversas e Histórias de Mulher”.
A mulher brasileira só iria conquistar a tão sonhada liberdade com a revolução sexual dos anos 70 e a entrada do mercado de trabalho. A independência financeira abriu uma série de possibilidades antes impensáveis, como, por exemplo, ser sozinha por opção. As mulheres podiam se divorciar, abrindo mão de um casamento que não lhes trouxesse felicidade. Ou simplesmente não se casar ou não ter filhos, em nome de uma vida mais livre ou mesmo da carreira.
E hoje? Será que chegamos ao ponto de sermos felizes sozinhas? Será que muitas de nós não se prendem a relacionamentos ruins devido ao medo da solidão? Buscamos um companheiro para dividir as alegrias e tristezas da vida ou precisamos de um homem ao nosso lado para nos sentirmos seguras e aceitas? – Márcia Pinna Raspanti.
Ótimo texto, Márcia!
Fez-me pensar em um livro de Ronaldo Vainfas, o “Trópico dos Pecados – Moral, sexualidade e inquisição no Brasil” em que o autor discorre sobre o período em que a inquisição esteve no nosso país.
Ele fez uma pesquisa em arquivo deste tribunal e em determinado capítulo menciona como no senso comum de então (falamos aí dos séculos XVI, XVII) a mulher “solteira” era aquela que não contava com a proteção do pai ou marido. Com esta mulher, acreditava-se popularmente, não havia problema em se manter relações sexuais esporádicas – não havia pecado. Isto nos fala bem da situação desprotegida socialmente em que ficava uma mulher que porventura não estivesse “tutelada” por pai ou marido.
Esta é mais uma nuance histórica do termo “mulher solteira” – interessante perceber como o uso do termo carrega toda uma semântica, própria de seu tempo.
Obrigada pelos seus comentários e pela indicação deste excelente livro do prof. Vainfas, Érica. Realmente, o rótulo de mulher solteira ou sozinha carregava uma carga negativa muito grande. Hoje, apesar de algumas mudanças, ainda existe preconceito.
Bom texto, Márcia Raspanti. É sempre bom rever como houve um esforço de marginalização ‘da’ mulher solteira. Outro ponto que gostei foi essa questão do professorado – o que não deixa de recair marginalização sobre a profissão, além de incidir nas mulheres… Por fim, senti falta de uma reflexão sobre o contexto contemporâneo. No mais, parabéns pelo texto.
Obrigada, Paulo. Sobre o momento que vivemos hoje, temos mais perguntas do que respostas.