Ser mãe na Colônia: entre o dever e o sofrimento

A observação de testamentos do período colonial revela maternidades fecundas. Na São Paulo de 1705, por exemplo, Messia da Cunha despedia-se de oito filhos, “seis fêmeas e dois machos”. Ana de Oliveira legava bens em 1794 a oito filhos, e a maioria das mulheres, ao  encomendar suas almas “por a morte não dar mais lugar”, referiam-se a mais de dois herdeiros. Tantos filhos certamente não apareciam nas listas nominativas pela  alta taxa de mortalidade infantil, mas também pelo hábito de fazer circular na casa de parentes e compadres os filhos menores.

No litoral paulista, ao final do século XVIII, Maria Alvarez de Moura, casada  com um roceiro pescador aos 15 anos, dera-lhe, até os quarenta, 17 filhos. Maria Costa, tal como sua antecessora, também casada muito jovem, aos 13 anos, até a data de seu falecimento, aos vinte anos, tivera três filhos. Malgrado sua existência miserável e a ausência de um companheiro oficial, Bárbara Maria da Silva, morta aos 39 anos, deu à luz sete filhos entre 1792 e 1803. Ana de Sousa, por sua vez, retratava em sua alta taxa de fecundidade o drama de maternidade que não vingavam. Dos oito filhos que teve, sete morreram.

O pioneiro estudo de Maria Luiza Marcílio recupera uma São Paulo setecentista que assistia ao deslocamento sistemático de seus homens, adultos e solteiros, empurrados para fora da capitania pelas oportunidades de melhor sobrevivência em Minas Gerais, no litoral e ao sul. A cidade, então, caracterizada por uma enorme população de bastardos e ilegítimos, era um reflexo de maternidades engendradas longe das admoestações clericais em prol do casamento. A lista nominativa do bairro do Pari, em 1765, chega a mencioná-lo por sua peculiar constituição: “quase todo gente bastarda”. Segundo Marcílio, a proporção de mulheres solteiras era muito mais elevada do que a de homens, e o resultado das pesquisas demográficas apresenta uma sociedade com índice de fecundidade elevado. No entanto, esses resultados, ela diz, devem ser matizados pela alta mortalidade infantil e juvenil que roubava forte proporção de filhos. As maternidades constituíam-se, portanto, à luz do sistema colonial, que obrigava a partida dos companheiros e deixava a mulher, sobretudo a pobre, disponível para gestar filhos ilegítimos.

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O caso de Inês Machado, parda, solteira, com vinte anos, ilustra bem a situação de outras tantas mulheres. “É pobre”, menciona a lista nominativa, e no ano anterior fora registrada em companhia de sua avó, Catarina Machado; “e ao presente ano vive em sua casa com seus dois filhos Manuel e Rosa, os quais vieram da vila de  Parati, onde residiam, para sua companhia”. O padrão de mães solteiras jovens e pobres aparece com recorrência, e anuncia existências como as das solteiras Ana Sousa e Bárbara Maria: miseráveis, sem companheiros e carregadas de filhos que, se sobreviviam, as ajudavam a viver; se pereciam, matavam-nas mais rápido pela total indigência em que ficavam.

Russel-Wood confirma em seus trabalhos a presença de um grande número de filhos cujas vidas eram ceifadas em tenra idade. O autor sublinha que essa elevada fecundidade justificava-se, sobretudo, nas áreas agrícolas, onde o desaparecimento do provedor era comum, e informa que a média de crianças por fogo, na São Paulo do século XVII, era de 5,14. Maria Luiza Marcílio demonstra que a fecundidade se concentrava nas idades maternas de 15-19 e 25-29 anos, começando a infletir daí para a frente. Caberia descobrir se haveria nesse declínio o reflexo de algum dispositivo de controle malthusiano: abortivos? Coito interrompido ou infanticídio?

Em Minas Gerais do século XVIII, Donald Ramos reconheceu o mesmo quadro em que se fabricavam mães solteiras. Havia em Vila Rica um índice de 45% de fogos com chefia feminina, dos quais 83,1% abrigavam mulheres não casadas. Suas atividades constituíam-se em trabalhos domésticos, prestação de serviços e comércio. Os primeiros filhos chegavam quando tais mulheres tinham em torno de 23 anos e havia uma presença de 1,33 crianças por domicílio nos fogos matrifocais. Números tão baixos em circunstâncias de mulheres tão disponíveis levam a pensar numa forte circulação de crianças ou num eficiente controle de natalidade. Diz Ramos com grande sensibilidade que o controle de recursos na mão da mãe lhe reforçava o poder natural, já bastante inchado pela responsabilidade que tinha de educar e estabilizar a famí1ia na ausência do pai. As deserções masculinas intencionais ou aleatórias acabavam por amalgamar a mãe à sua prole, conferindo a esta um status que a mulher estéril não possuía.

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No entanto, a história do adestramento feminino no interior da ética procriativa e do casamento foi também o percurso da vitimização da mulher. Submetida a um controle sexual permanente por parte da Igreja e da medicina, havia ainda que enfrentar os rígidos códigos sociais que incentivavam a fecundidade e reprimiam a esterilidade. Empurradas por tal ética, desprovidas de contraceptivos eficientes, crentes no lema de que ‘os filhos eram a riqueza do pobre’, as mulheres curvavam-se aos deveres sexuais e eram vítimas de partos e gestações muitas vezes fatais.

Vítimas também se tornavam dos cuidados com os filhos, da luta pela sobrevivência de seus núcleos familiares e de todo o esforço físico e material que faziam para mantê-los. Vítimas eram, finalmente, de seus corpos, este território quase desconhecido, provedor de doenças, achaques e defeitos com os quais a medicina não sabia lidar a não ser por fórmulas mágicas. Houve que se esperar a descoberta de métodos eficientes de contracepção para que a mulher emergisse inteira em seu papel de mãe, substituindo o dever da procriação pelo desejo sincero de ter filhos. Mas, enquanto os métodos contraceptivos não se vulgarizaram, a mulher fez da maternidade um território de revanche contra o sofrimento físico e material, tanto quanto um espaço de poder e adaptação aos ritmos da colonização.

– Mary del Priore. (“Ao Sul do Corpo”, Ed.José Olympio/Edunb, 1993).

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  1. Lia Carolina Prado Alves Mariotto

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