Em agosto de 1940, o presidente Getúlio Vargas visitou a aldeia dos índios Karajá na Ilha do Bananal, no Brasil Central. Foi o primeiro presidente brasileiro a visitar uma área indígena, ou o Oeste da nação. Três anos antes, ele proclamara um Estado Novo compromissado com o desenvolvimento e a integração nacional. Como parte de seu projeto de construção de um Brasil novo, mais independente economicamente, mais integrado politicamente e socialmente mais unificado, Vargas voltou-se para o valor simbólico dos aborígenes. Diferentemente de “plantas exóticas” do liberalismo econômico e do marxismo, os quais o regime autoritário nacionalista procurou extirpar o solo brasileiro mediante repressão política, censura e intervenção federal em assuntos regionais, os índios seriam defendidos por Vargas por conterem as verdadeiras “raízes da brasilidade”.
Ainda segundo Garfield, os Karajá, então sob a responsabilidade de um órgão federal, o Serviço de Proteção aos Índios (SPI), receberam a delegação presidencial com uma grande cerimônia. Apresentaram rituais “tradicionais” e cantaram o Hino Nacional diante da bandeira brasileira. Vargas, por sua vez, distribuiu facas, machadinhas e ferramentas para os índios. Para destacar sua imagem de “Pai dos Pobres”, o presidente segurou um bebê Karajá nos braços. Depois de explorar Bananal, Vargas manifestou o desejo de reconhecer o território dos “Xavantes extremamente ferozes” que habitavam as redondezas. Da segurança de seu avião, Vargas viu, através de binóculos, uma aldeia Xavante não contatada. Encorajado por essa oposição potencial, o ilustre visitante esboçou seu plano para o Oeste. Vargas prometeu distribuir terras para os índios e caboclos que viviam na região, pois, ao “fixar o homem a terra”, o Estado extirparia as raízes do nomadismo, convertendo índios e sertanejos em cidadãos produtivos. Ao SPI caberia doutrinar os índios, “fazendo-os compreender a necessidade do trabalho”.
Segundo o historiador Seth Garfield, a viagem de Vargas ao Centro-oeste, arquitetada para se assemelhar às ousadas expedições dos bandeirantes no período colonial, não foi na verdade uma aventura perigosa. As maravilhas da aeronáutica facilitaram o acesso do poder estatal a lugares antes inacessíveis. Além disso, o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), encarregado de divulgar as diretrizes culturais e ideológicas do Estado Novo, assegurou uma viagem tranquila. Um cinegrafista do DIP acompanhou Vargas, filmando imagens que o regime autoritário nacionalista procurou tornar relíquias: índios vigorosos, emblemáticos da força inata dos nativos brasileiros; o “tradicionalismo” das comunidades indígenas; a camaradagem entre índios e brancos; a bonomia do presidente, símbolo do homem cordial brasileiro; o longo braço do Estado estendendo-se sertão adentro para dar-lhes assistência.
Os nossos últimos brasis representavam uma porcentagem minúscula da população brasileira situada predominantemente nas fronteiras remotas, mas, foram, de repente, convocados para o palco da política. Diferentes fatores provocaram o seu aparecimento: o esforço do Estado Novo para consolidar o poder e redefinir o território nacional; e as preocupações da elite sobre as origens da nação e a composição racial da época. Tudo isso influenciaria uma formulação do Estado sobre a identidade cultural dos índios e uma política para a sua integração.
Integração? Frei José M. Audrin, dominicano que exerceu seu árduo ministério, durante 50 anos, entre o norte de Goiás e o sudeste do Pará, deixou suas impressões sobre sertanejos e índios, nas quais se lê o tipo de integração obtido nessa época. Contou ele que contato entre uns e outros era “de quase convivência”, pois “depois que os cristãos se apoderaram daquelas terras, os índios continuam a percorrê-las e habitá-las como seus legítimos ocupantes”. Costumavam acampar nas praias do rio Araguaia e quando das grandes chuvas, nas altas barreiras. “Podia-se entrar e demorar nas malocas. Negociar amistosamente peixes, produtos de caça, aves selvagens e diversos artefatos a troco de linhas de pesca, anzóis, espelhos e outras bugigangas. No verão, instalavam-se perto das aldeias, pescadores de pirarucus, angariando índios como arpoadores e hábeis flecheiros para suas pescarias. Quando a tripulação de um barco precisava de reforço para saltar pedrais e vencer rebojos, encontravam entre eles remeiros e até pilotos adestrados”. Os Caiapós e Carajás agasalhavam os sertanejos com quem negociavam milho, fumo e ferramentas ou armas munições e aguardente. “Ao menos uma vez por ano, vinham aos nossos povoados e passeavam pelas ruas, homens, mulheres e crianças, vendiam frutas, papagaios e macacos, admiravam as lojas, assistiam mesmo inteiramente despidos, as festas religiosas. Em noites de luar, cantavam e dançavam nas praças, senso depois gratificados pelos moradores”.
Segundo Frei Audrin, o mesmo acontecia com outras nações da região do Tocantins: Xerentes, Caraós e Apinajés. Os últimos pediam serviço. Ofereciam-se para tarefas de roça, a fim de ganhar dinheiro ou roupas. Índios, amigos entre si? Não. Caiapós e Xerentes não se davam e os primeiros evitavam os Carajás. Tais “antipatias” se reproduziam nas escolas rurais mantidas pela missão dominicana. Todo o cuidado era pouco. Ele relatou ainda também a exploração sofrida pelos índios:
“Tropeiros e seringueiros contratavam jovens silvícolas iludindo-os com promessas irrisórias e pagando-os com miseráveis salários […] Por uma simples garrafa de péssima aguardente, por um punhado de sal, uma rapadura ou alguns litros de farinha de mandioca, subtraíam aos pobres selvagens roupas novas e ferramentas recebidas pouco antes das mãos dos missionários […] Que diremos, então, dos caminhos abertos pelos viajantes através das plantações dos índios para dar passagem aos seus comboios, das devastações de arrozais e mandiocais por criminosos tropeiros que soltavam neles os seus animais para ali pastarem dias e noites?”.
Mas os índios reagiam: ateavam fogo aos canaviais, poluíam ribeirões com o suco venenoso das raízes do tingui, flechavam gado e cavalos. As tensões foram tantas e tão violentos que nasceu então a ideia de “reservar-lhes territórios bem determinados, dos quais fossem donos absolutos, seguindo livremente seus costumes ancestrais”. Havia ainda as nações sem contato com brancos. No baixo Araguaia, os Gorotirés. Nos municípios de Peixe e Descoberto, os temidos “canoeiros”. Nas matas do Xingu, os Xicrins, Açurinis e Gaviões. Encontros sangrentos se multiplicavam. Segundo o dominicano, eram silenciados pela imprensa: essa era “a triste condição da Marcha para Oeste”. E da propalada “integração”.
- “Histórias da Gente Brasileira: República 1889-1950 (vol.3), de Mary del Priore. Editora LeYa, 2017.