Considerado um “continente explosivo” pelos políticos norte-americanos, a América Latina recebeu as bênçãos da contracepção antes mesmo da França. Aqui, pílula e Diu foram comercializados desde os anos 60, enquanto naquele país, só em 1967. Começaram, então, a ser criados organismos de ajuda que propunham a adoção de estratégias de redução do crescimento populacional. Por quê? Porque pobreza e natalidade alta, ou seja, “a bomba demográfica” era um perigo a evitar. A comercialização da pílula teve início em 1962. Jornais e revistas voltados para o público feminino informavam suas vantagens. Obstetras e ginecologistas, por seu lado, divulgavam seu uso entre a clientela.
Em 1968, o presidente do Banco Mundial visitou o Brasil e sua declaração sobre a necessidade de controle dos nascimentos nos países subdesenvolvidos gerou mal-estar. Temia-se que os empréstimos internacionais fossem acompanhados de uma tentativa de controle demográfico. Um projeto circulava, então, no Congresso Nacional para baratear o preço dos anticoncepcionais. O presidente Costa e Silva, contudo, reagiu. Foi dos primeiros a apoiar a encíclica Humanae Vitae, na qual o papa Paulo vi condenava o controle governamental sobre a natalidade e só aceitava a abstinência sexual como método contraceptivo. O assunto não era unanimidade no seio do governo militar. Por um lado, “antinatalistas” reivindicavam um modelo de desenvolvimento que tinha na redução da natalidade um paradigma de país desenvolvido. Por outro, os “anticontrolistas” pregavam a “ocupação dos espaços vazios” e a importância de multiplicar brasileiros em todas as partes do país. O governo não interferiu diretamente, mas sociedades civis internacionais se estabeleceram aqui, atuando nas camadas populares. Foi o caso da IPPF, International Planning Parenthood Federation, que financiou, a partir de 1965, a Bemfam, Sociedade Civil de Bem -Estar Familiar.
Se o assunto, porém, era discutido pelas classes médias, matéria de Veja, em outubro de 1968, se perguntava que conhecimentos tinham as brasileiras pobres sobre a pílula. Mariana, moradora de um cortiço, que já fizera abortos por métodos do tipo “pode deixar que eu sei”, e usava tampões com água oxigenada ou salgada para evitar a gravidez, dizia que já tinha ouvido falar que existiam outros métodos de contracepção, mas que “dentro de mim ninguém mexe”. O artigo demonstrava que o desconhecimento acerca dos modernos métodos contraceptivos, além de multiplicar a população, empurrava tais mulheres para a prática do aborto. Outra entrevistada, a balconista Antônia, dezenove anos, assim definia os métodos para se evitar gravidez: “Isso é sem-vergonhice! Amor e maternidade são as coisas mais lindas do mundo”. Já para Ivani, mãe de nove filhos, “O casamento tem como fim a constituição da família. A pílula pode contribuir para que o casal se esqueça disso, vivendo apenas como macho e fêmea. E só nisso não pode haver amor e respeito”.
Segundo a matéria, se a Igreja permitisse o uso de pílulas anticoncepcionais, “os 19% de mulheres que as utilizavam poderiam subir a 45%”. Embora as políticas populacionais estivessem voltadas para as camadas desfavorecidas, milhares de mulheres experimentavam a contracepção. Seu objetivo era um só: reduzir o número de filhos. Em 1967, em artigo sobre “A mulher brasileira, hoje”, a revista Realidade informava que 87% delas achavam importante evitar filhos. E 46% adotavam alguma forma de contracepção: “tirar”, por exemplo, era a palavra mais usada para falar do “coito interrompido”. Porém, 19% já usavam a pílula.
O planejamento familiar merecia poucas manifestações por parte das autoridades salvo do presidente Médici que, certa vez, defendeu em discurso que o país não poderia seguir as linhas dos que optaram por crescimento gradual e controlado se nossa realidade era a explosão demográfica. Foi secundado pelo ministro da Fazenda, Delfim Neto, que apostava no desenvolvimento econômico contra a explosão populacional. Bastava duplicar a renda per capita em dez anos, em vez de onze e o problema estaria sob controle – acreditava o economista. Contra tal otimismo, não faltaram críticas, sobretudo quando a euforia do crescimento começou a declinar. O economista Mário Henrique Simonsen, por exemplo, ponderava que o direito de opção sobre ter ou não filhos era privilégio das classes mais ricas e, subtraído aos mais pobres. O presidente Geisel, por sua vez, dizia já ter aprovado o divórcio, deixando, portanto, a bomba do planejamento familiar para seu sucessor. Figueiredo, preocupado com os 80 milhões de pobres brasileiros, enfrentaria a Igreja, e consolidaria o plano. Ele seria implantado lenta, gradual e sutilmente, evitando-se as campanhas publicitárias, via mídia.
Em 1984, foi criado o Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher, da puberdade à terceira idade. O Ministério da Saúde distribuía nos postos médicos informações sobre a reprodução humana e indicações para o uso da pílula anticoncepcional, preservativos e pomadas espermaticidas. Afinal, anualmente, nasciam três milhões de brasileiros. Um Uruguai! A Igreja Católica reagiu e sobraram colisões. “Na linguagem vulgar, esterilização é castração”, rugia Dom Aloísio Lorscheider. Dar pílulas para as pobres era “ato criminoso” no entender do cardeal Vicente Scherer.
Não estavam sós. A existência de uma “Amazônia a ser povoada” e da soberania do país, deixava o embaixador brasileiro em Genebra, local de uma reunião mundial da 17ª. Comissão de População das Nações Unidas, à vontade para afirmar que 60% das crianças que nasciam de mães que tomavam pílulas eram portadoras de deficiências físicas ou psíquicas. Não faltava conservadorismo ou mesmo autoritarismo na análise da questão. Para a Índia que “inchava”, melhor esterilização em massa argumentavam alguns cientistas. Enquanto gráficos apontavam os males da explosão populacional, nenhuma instituição era mais defendida do que a “grande família”. Por isso, dispositivos intrauterinos eram evitados, o aborto continuava a ser perseguido e a população pobre continuava sem acesso ao planejamento familiar.
Para as que consumiam a pílula, nem tudo era um mar de rosas. Muitas mulheres se queixavam dos efeitos colaterais. No início dos anos 70, o debate na imprensa sobre benefícios e malefícios da pílula teve início. Sob investigação no Senado americano, a drágea passou a ser fornecida apenas sob prescrição médica. A medida gerou reações variadas. Uma universitária carioca de 23 anos, entrevistada pela revista Veja, reagia: “Todos fazem campanha contra os perigos da pílula. E da cortisona – muito mais perigosa -, ninguém fala?!”. Já uma paulista, casada, de 26 anos, comentava: “Minha irmã começou a tomar a pílula faz três semanas. Com toda essa onda, já parou”. E uma dona de casa de 26 anos, de Salvador, se mostrava furiosa: “Estou louca da vida com o médico. Nunca me falou nada”. Uma porto-alegrense, solteira, de 23 anos, concluía: “prefiro sofrer os enjoos da pílula a enfrentar a grande dor de cabeça da gravidez”. Entre as principais acusações contra a pílula, as mais graves eram a de causar tromboses e até mesmo câncer. O resultado foi o aumento de cirurgias de esterilização. Um aumento de 100% em relação à década anterior.
A Igreja Católica não dormia. Vários documentos associando pílula e pecado seguiam bombardeando os fiéis. A própria encíclica Humane Vitae fora uma pá de cal entre os católicos esperançosos da aceitação da pílula. Dom Lucas Moreira Neves, contudo, tinha outra leitura: não se tratava de mera condenação. Mas de incentivo a que os cientistas aprimorassem, “o mais depressa possível”, o método da continência periódica. No início dos anos 70, apareceu uma “pílula masculina”. Veja deu ampla cobertura. Mais uma vez, discutiam-se os efeitos colaterais: aumento de peso e, sobretudo, a diminuição do apetite sexual. Para o cientista Elsimar Coutinho, “Nas mulheres, entretanto, esse aspecto não é valorizado. Muitas aceitam submeter-se a uma atividade sexual não satisfatória em troca da garantia de não conceber”.
- Texto de Mary del Priore.