O viajante que chegasse no Rio de Janeiro, em 1808, junto com a família real portuguesa, iria se surpreender. Considerado um dos portos mais bem localizados do mundo, a cidade estava na rota de embarcações que vinham da África, Europa, América do Norte e Ásia. Visto de longe, depois de viagens que duravam de 30 a 40 dias, o burgo entusiasmava: a mata chegava até o mar e o casario branco se espalhava sobre as colinas. O perfume de flores invadia o nariz e o som dos pássaros coloridos enchia os ares. Mas era só desembarcar para constatar a pobre realidade. Esgotos a céu aberto corriam por entre os sobrados. Animais domésticos pastavam nas praças. As praias serviam como desaguadouro de águas servidas. Tudo parecia “horrivelmente sujo” e abandonado.
Mas era exatamente pelas ruelas estreitas e por caminhos cheios de mato, que o cotidiano de milhares de habitantes se fazia. Gente e coisas, objetos e pessoas se acotovelavam. Por trás da pobreza material, descrita pelos viajantes estrangeiros, se gestava um singular cosmopolitismo tropical.
Maior porto de desembarque de escravos do continente, a cidade suscitava uma pergunta: chegava-se à América ou à África? Pois o elevadíssimo número de africanos e seus descendentes impressionava. Eles não só atravessavam o Atlântico, vindos da Costa da Mina, Congo, e mais tarde, Moçambique e Angola. Muitos deles, vindos da América espanhola e confundidos aos trabalhadores livres, misturavam-se no labirinto da cidade. Entre eles, ranchos de audaciosos capoeiras cruzavam a Candelária armados de paus e facas, exibindo-se num jogo atlético. Carregadores e mulheres ambulantes, ligeiramente vestidas, transportavam toda a sorte de mercadoria na cabeça: frutas, animais vivos, pacotes, feixes de fumo, água potável, roupas sujas e limpas, tigres com excrementos. Marcavam sua presença com cantos e gritos de trabalho, provocando uma ruidosa música que se misturava aos outros ritmos da cidade.
Não era uma massa uniforme esta que se exibia, oferecendo serviços. Nela, os indivíduos se identificavam pelos sinais de nação, talhos e escarificações no corpo ou na face. Os cuidadosos penteados denotavam o estado civil e pertença da pessoa a determinado grupo. O abadá, espécie de túnica branca, por exemplo, era usado pelos malês. O uso do camate, gorro circular, sinalizava o adepto de rituais bantus. O fez apontava os islâmicos. Contas enfiadas em palhas da costa, as ilequês, tinham função social e religiosa e eram “lidas” à distância.
As negras de ganho, com seus xales azuis, traziam sobre si objetos de cunho propiciatório, buscando proteção, lucro e boa sorte. Esses objetos, dispostos na cintura por argolas individuais ou tiras de couro, eram bolas de louça, figas, saquinhos de couro, dentes de animais e também medalhinhas, crucifixos e outros símbolos cristãos relidos pela funcionalidade mágica de suas formas. Seus tabuleiros também iam protegidos por figas de madeira, imagens de santo Antônio e pequenas moedas. Os vendedores de cestas se identificavam pelo calção de algodão apertado na cintura, por uma cinta de sarja de lã e uma camisa enrolada em volta do corpo. As vendedoras de angu, prato da culinária afro-brasileira, tinham que ter as vestes impecáveis. As diferentes nações de africanos e seus descendentes formavam fronteiras não visíveis aos olhos de europeus, organizando-se por meio de irmandades religiosas, pontos de encontros e sociabilidades como os cantos e, mais tarde, os zungus, espécie de tabernas onde conversavam, cantavam, bebiam e namoravam.
Trazendo todo o tipo de colaboração para a nossa cultura, língua, música, trabalho e gastronomia, os africanos incorporaram-se à globalização que já se operava nesta parte do mundo. Não estavam sós. – Mary del Priore.
“Negras livres vivendo de suas atividades”, de Jean-Baptiste Debret.
Essa matéria me fez lembrar o livro “1808” de Laurentino Gomes.