Em meio à polêmica dos testes de medicamentos e cosméticos em cães, vamos conhecer um pouco melhor a relação entre os brasileiros e os animais, tanto os domésticos, quanto as feras e os “de criação”. Desde os tempos coloniais, cachorros, gatos, cavalos, galinhas e muitos outros fazem parte da nossa vida cotidiana
Os animais têm história? Sim. Durante um bom milhão de anos, os animais viveram sem os homens. Por outro lado, desde nossa aparição sobre a terra, não vivemos sem eles, dos quais fomos, muitas vezes, vítimas: do piolho à fera brava. Com ou contra os homens, os animais possuem uma história que passa pela zoologia, os textos sagrados, a literatura, os tratados de caça & pesca, os livros de cozinha, os manuais veterinários, a arte e o folclore.
De uso corrente desde o século XII, a palavra animal não foi dicionarizada em Portugal até o final do século XVII. Contudo, nossos antepassados, não só tinham extremo convívio com os animais como acreditavam que, feitos por Deus, eles possuíam, como nós, linguagem e organização. As formigas e térmitas, por exemplo, obedeciam a reis e rainhas. E não faltava imaginação para explicar certas formas: o morcego nascera de ratos velhos. O gafanhoto seria metamorfose de galhos secos. A enguia, um fio de rabo de cavalo, caído na urina humana. O burro tinha orelhas grandes, pois não decorou seu nome e Nosso Senhor as puxou fortemente.
Crenças em torno dos bichos, não faltaram, como apontou mestre Câmara Cascudo: matar gato dava sete anos de azar. Cão? Ficava-se devedor de São Lázaro. Presentes nos autos de Natal, bois, ovelhas, perus e patos falavam pelos cotovelos. Para muitos de nossos avós, o animal era portador de memória, defeitos e virtudes compreensíveis para seus iguais ou alguns “entendidos”.
Pioneiro, Gilberto Freyre sintetizou os opostos, bichos bons e maus que açodaram a vida de nossos antepassados. Os bichos-de-pé furavam os dedos dos homens, enquanto carrapatos e varejeiras perseguiam o gado. A esperança de boca preta era agouro; a de boca vermelha, felicidade. Papagaio era bem aceito em casa, mas, periquito, espantado do terreiro a toda a hora. Os urubus eram bem-vindos por limpar o lixo, mas não os morcegos, considerados inimigos dos cavalos dos senhores de engenho. A lagartixa e as rãs eram toleradas perto de casa e serviam às “judiações” dos meninos. Já o sapo, não; era bicho de feitiçaria e enxotado de casas e sobrados. Cabras, galinhas e vacas serviram, segundo o mesmo autor, à iniciação sexual de muito menino da roça.
Alguns dos animais domésticos estiveram presentes desde tempos coloniais. Os índios desconheciam-nos assim como as criações para abate. Afinal, extraíam seus alimentos da caça e coleta. Mas não demoraram em adotar o porco manso que virou taiaçu-guaiá e os cães chamados de “onças de criação” ou iaguás-mimbabas. Cachorros se tornaram utilíssimos: desentocavam a caça e alertavam da chegada de inimigos, função bem diferente que teriam nas Cortes européias na mesma época: disfarçar o cheiro de flatos emitidos involuntariamente. Quanto às galinhas, tiveram tanto sucesso que em pouco tempo os índios vendiam ovos aos portugueses. O mesmo se deu com os cavalos europeus. Montados pelos guaicurus, do Pantanal, viraram eficazes instrumentos de guerra.
Mas não só europeus e índios montavam a cavalo. Africanos e seus descendentes de origem jalofo, vindos da Senegâmbia, faixa de terra banhada pelos rios Senegal e Gâmbia, localizada entre o Saara e a floresta equatorial tinham total intimidade com a arte da cavalaria. Na descrição de um capitão português, André Alvarez, eram “grandes homens de cavalo, bons cavalgadores, boa gente de guerra”. Seus cavalos vinham do Magreb onde eram trocados por mercadorias, sobretudo, escravos. Cada animal valia de dez a quinze indivíduos. Os cativos vindos do Golfo do Benin tinham grande intimidade com cavalos berberes e árabes, pequenas jóias de beleza e resistência que se espalhavam pelo Norte da costa africana. Saber montá-los, mais do que um exercício, era uma arte revestida de simbolismo, sem contar que o animal era econômica e socialmente útil como meio de transporte.
O cronista Gabriel Soares de Souza já sinalizava a presença de “todos os animais domésticos e domáveis da Espanha”, na Bahia ao final do século XVI. Os cavalos abandonados quando da destruição de Buenos Aires pelos índios, constituíram a base de numerosas manadas de cimarrones que deram origem às tropas de cavalo Crioulo. Seu criatório nacional era a Campanha Gaúcha onde graças ao pasto e águas abundantes, rachavam de gordos. Nesta época, Minas Gerais já se destacava como centro criador de eqüinos com a chegada da raça Alter e mais tarde, com o Mangalarga Marchador, que mais marchava do que trotava, desenvolvido na fazenda Campo Alegre, pertencente ao barão de Alfenas, no sul de Minas Gerais.
Junto ao cavalo, o boi. O gado bovino apresentava semelhança com a raça Garaneza, provavelmente introduzida no Nordeste pelos franceses, e com a, descendente direta dos animais dos troncos lusitanos: o Bos taurus. Ana Pimentel, mulher de Martim Afonso de Souza, importou o primeiro plantel: “bois capados, vacas fuscas, alvasãs, broquilhas, vacas parideiras, vacas com suas crianças”, na descrição do cronista Gabriel Soares de Souza, em 1587. Os jesuítas, por sua vez, disseminaram reses no Rio Grande do Sul, para alimentar as aldeias de catequese. As manadas baianas silenciosas e lentas se expandiram. E se expandiram tanto, que depois da partida dos flamengos, em 1654, multiplicaram-se os conflitos com populações indígenas por espaço para sua criação. Na época, tais embates foram denominados de “Guerras dos Bárbaros”.
Para atender ao desenvolvimento das correntes de circulação humana, durante o século XVIII, cresceu um meio de transporte eficiente: a mula. Estável nas trilhas pedregosas, capaz de suportar peso e pouco exigente quanto a alimentação o muar se tornou excelente fonte de renda para os tropeiros que cruzavam o Sudeste. Com pelagem variada – escura, ruona, rosilha, cor de rato, camurça ou gateada- era o resultado do cruzamento do jumento com égua: “As éguas têm que ser enterradas para suportar em o acasalamento com o estranho garanhão”, explicou o viajante Ave-Lallemant em 1858. A importância de sua criação foi fundamental para a economia colonial como reconheceu o próprio rei D. José, em Carta Régia.
Porcadas desciam junto com as tropas de mulas para abastecer a capital da América colonial, o Rio de Janeiro, e cabras davam carne e leite para as famílias de lavradores. O único risco era seu apetite por tenros brotos de cana: “logo a vão investir”, queixava-se o cronista André João Antonil, em 1711.
Mas se esses foram os animais amigos, não faltaram os inimigos. As formigas em “prodigiosa quantidade” foram apelidadas de “rei do Brasil”. Em carreiras ondulantes, dia e noite, devastavam tudo. Inteligentes, segundo Gabriel Soares de Souza, “traziam espias pelo campo”. Guilherme Piso, médico holandês, acusou-as de cavar a terra como toupeiras e comer insetos venenosos. O pior é que para combater as “cortadeiras” queimava-se a mata primária. Junto com as formigas, gafanhotos e térmitas não davam sossego: “estragam tudo quanto existe” queixavam-se os padres jesuítas. E o que dizer do “verme negro” ou pão de galinha que acabava com o maior investimento da Colônia, a cana de açúcar? Já as lagartas não davam sossego aos pés de fumo e a cangapara, ou percevejo do colmo, aos arrozais. Outro grande perigo eram os ratos. Eles não só disseminavam doenças como atacavam a colheita estocada em paióis e galpões. Multiplicavam-se quando o bambu frutificava e, uma vez exaurido, assaltavam os milharais.
Havia ainda aqueles bichos que atacavam, não as plantas, mas os trabalhadores. O temor de escravos e lavradores era o número de repteis ignorados, sobretudo de serpentes nos canaviais. O desconhecimento da ofiologia incentivou cronistas a fazer listas extensas nas quais constavam cobras “espantosas e medonhas”! Desde a cascavel, jibóia, surucucu, caninana e jararaca, a boicupenga, descrita pelo padre Fernão Cardim como “tendo espinhos pelas costas”. E o que dizer daquele observada por Piso que, “metida à extremidade da cauda no ânus de um homem, causa-lhe imediatamente a morte”. A crença em serpentes voadoras e de duas cabeças aumentava em muito o pavor dos colubrídeos.
O canavial era padroeiro de outros seres peçonhentos. Havia lacraias, aranhas, escorpiões, baratas, pulgas, carrapatos e percevejos. As condições de trabalho, sem sapato na maioria dos casos, só agravavam as consequências de suas picadas. Mortais eram as desferidas por vespas “que fazem ninhos nas árvores e gostam de perseguir os gados e os viajores”, anotava Guilherme Piso.
Os animais, os úteis ou os devastadores, possuíram na vida brasileira uma importância cultural considerável; forneceram um manancial inesgotável de metáforas e categorias morais – certo e errado – que encontravam uma base concreta para todos: “traidor como cobra” ou “teimoso como mula”. É vasta a história dos animais e, bom não esquecer, eles também tem a sua. – Mary del Priore
Joaquim José de Miranda. Cena da expedição do Cel. Afonso de Sampaio e Souza (1768-1763). Índios, colonos e cachorros em um momento de convivência harmônica.
Excelente! e não poderia ser melhor. Vida cotidiana do Brasil de antanho. Parabéns!
Interessantíssimo texto. Admiro seu trabalho. Amo história.
Muito bom o texto, pois traz de modo enfático a presença de animais e sua importância na vida do homem.
Gostei do artigo, pois a historiadora nos relatou como os animais tem a sua parcela de contribuição para a formação da sociedade brasileira.
Muito interessante este artigo. É a primeira vez que leio algo tão completo sobre animais.
Adorei o texto. Parabéns!
Ana Escaleira
Médica Veterinária e Internacionalista