Remédios e feitiços contra impotência e esterilidade

          Tanto em Portugal quanto na Colônia vivia-se a crença de poderes diabólicos sobre o corpo e a sexualidade, rastreados, aliás, por todos os manuais inquisitoriais de demonologia, os quais exigiam medidas combativas contra a esterilidade. Eis porque as Constituições do arcebispado da Bahia mencionam a impotência como uma das artes de Satã. Além de buscar a neutralização do mal, tais receitas, quando não eram eficientes, serviam como desculpa para esposos interessados em reverter o quadro de indissolubilidade matrimonial, os quais valiam-se da alegação de não cumprimento do débito conjugal. Para os menos impressionáveis, recomendava-se que os ligados, abstendo-se do congresso alguns dias, recorressem a Deus com deprecações para que, por seu filho unigênito, Jesus Cristo, fosse servido destruir as obras do Demônio.

          Se as receitas médicas não funcionavam, não faltavam mandingueiros, calunduzeiros e outras “castas” de feiticeiros que propunham soluções distantes daquelas da Igreja ou dos médicos. Os saberes africanos, organicamente incorporados ao cotidiano em função de sua presença, ofereciam também recursos considerados eficientes. Processos de africanos e seus descendentes denunciados à Inquisição do Santo Ofício demonstram que seu sistema religioso estava conectado ao Cristianismo e, para interferir nos “ligados”, não faltavam preparos como os feitos por certa escrava Domingas Fernandes, em 1612. Ela aprontava unguentos à base de urina, mel e três escarros da pessoa, dizendo em oração: “tu que estás ligado, eu te desato com Deus Pai e a Virgem Maria, sua madre, e como o santíssimo sacramento que é a verdadeira vontade”.

          Para aqueles que quisessem tão somente conjurar os riscos do malefício, vivendo em “amor pacífico”, recomendava-se ao marido “trazer consigo o coração da gralha macho, e à mulher, o da gralha fêmea”. E, finalmente, para os que quisessem testar suas sinceras afinidades, uma fórmula que conciliava os que “se tratam com amizade recíproca, e aos que se aborrecem, aumenta a inimizade – “os pós de andorinhas vivas em uma panela a torrar no forno dadas a beber em vinho”. Encorajadas ou condenadas pela medicina, essas práticas tinham em comum o fato de realçar as partes do corpo, cujas conotações sexuais eram valorizadas por registros simbólicos. Bernardo Pereira sugeria aos ligados:

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Lavar as partes pudendas com cozimento da semente, flor e erva chamada vulgarmente pombinha, defumando depois com dente de defunto lançado em tijolo feito brasa, amaciando-o quando em quando em aguardente, e, depois de limpo o suor, untar com assa-fétida, embrulhando as partes (sexuais) em panos quentes defumados no mesmo.

          As unções com fel (fezes) de corvo ou de cão, os untos de “pardal e enxúndia de cegonha” e os banhos íntimos com açafrão, noz-moscada, carne de vitela, leite e vinho eram de uso recorrente. Inspirado em Garcia de Orta, que destacara os resultados da assa-fétida (para alguns autores, asa de morcego, para outros, uma planta da família das umbelíferas) “para levantar o membro”, Curvo Semedo, em 1707, recomendava um óleo em que “tivessem infundido cinquenta formigas que têm asas”, e Oliva Sabugo pedia atenção para “manjares que comem marido e mulher […] porque a forma sempre retém alguma coisa da matéria”. Desaconselhados eram os “maus mantimentos, nem coisas fleumáticas, nem melancólicas, ao tempo que há aptidão na mulher para emprenhar, para que a semente seja de boa matéria”.  Entre os “casados frios e velhos”, havia esperança para os que untassem levemente o membro, e principalmente a fava, com uma migalha de algália […] porque acodem tantos espíritos a ela e a engrossam de sorte que alguma vez não pode sair do vaso (feminino).

          Araújo lembra que o contato com os índios na América portuguesa levou ao emprego da pirótica, ou seja, do fogo nos procedimentos de cura. Homens cuja impotência causava-lhes dissabores e vergonha untavam o escroto e a região púbica com sebo de bode, “sentando-se sobre brasas vivas”, isto é, aproximando-se, o mais possível, de um “caco” (vasilha de barro em forma de alguidar) cheio de brasas. Provavelmente, de tal prática, informa-nos esse autor, nasceu a expressão “estar sentado em brasas”. Garrafadas à base de catuaba, largamente utilizadas até os dias de hoje, também decorrem dos empréstimos aos conhecimentos fitoterápicos dos tupis-guaranis.  A necessidade mística de progenitura atingia em cheio as mulheres. Comparadas a terras inférteis, humilhadas pelos companheiros e pela comunidade, associadas a mulas – animais estéreis geneticamente que eram conduzidos pelos padres, estes infecundos (pelo menos teoricamente) por vocação –, encaravam a impossibilidade de procriar como uma tara ou um contrassenso. Ao inverter o ciclo das gerações, interrompendo as linhagens e contrariando os ciclos agrícolas e a natureza, à qual seu período vital deveria comparar-se, a mulher estéril parecia ter o corpo entupido, fechado e prisioneiro de forças estranhas.

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          Além dos recursos devocionais às santas Ana e Comba, padroeiras da fertilidade conjugal, era preciso quebrar o obstáculo que obstruía a passagem da preciosa semente que poderia fecundá-la. As explicações médicas para os descaminhos fisiológicos do corpo eram impregnadas de magia. As exigências do moderno casamento cristão, bem como as condições para sua dissolução, não pareciam, porém, penetrar as teorias sobre a infertilidade feminina. As dificuldades para reunir em uma classificação os vários males “da madre”, as anomalias de órgãos que não podiam ser examinados porque internos e o mito da passividade da mulher na procriação contribuíam para que seu corpo fosse encarado, segundo Lígia Bellini, como uma “coisa obscura”.

          As analogias com animais de grande fecundidade faziam sugerir receitas à base de “sal fixo de ratos e caldo de galo velho”, por conceberem esses roedores “de uma só vez cinco ou seis ratinhos”. Beber “pelo tempo de três meses água cozida com uma mão cheia de sálvias machucadas” era indicação do “virtuoso” padre Jerônimo Lobo, religioso da Companhia de Jesus, conforme aprendera no Japão. Tomar feijão-fradinho misturado à água em jejum ou ingerir óleo de copaíba, como sugeria João Ferreira da Rosa, em Pernambuco, no século XVII, “alimpava o útero de sordícies” que atrasavam a concepção.

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          As histórias sobre esterilizações maléficas eram várias. Uma mulher vomitara uns poucos cabelos enlaçados, um molho de rosetas, agulhas e uma massa do tamanho de um ovo, do qual saiu multidão de formiguinhas que exalavam fedor tão horrendo que nenhum dos circundantes podia tolerar. Com o segundo vômito expulsou um animal como um punho negro, capiloso, com cauda grande e modo de rato que, depois de andar pela casa com muita presteza, morreu. Para fugir ao estigma da esterilidade, elas ainda untavam seus genitais com “esterco de raposa” e sebo de vaca, portavam amuletos feitos com genital de lobo, dentes de “mínimo de sete anos”, pedras de águia, além de rezar a Santo Hilário, conhecido por seu “remédio para os casados terem filhos e afugentar o demônio”.  A grande prole e o poder de gerá-la associavam-se às práticas de fecundidade, cujos restos, ou amostras, encontramos nas receitas mágico-medicinais inventariadas e “traduzidas” pelos doutores da época.

Baseado em : “O corpo vazio: o imaginário sobre a esterilidade entre a Colônia e o Império”, de Mary del Priore. IN: História do Corpo no Brasil. São Paulo, Editora Unesp, 2011. Organização: Mary del Priore e Márcia Amantino.

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“O Pesadelo”, de Henry Fuseli.

 

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