O café no Brasil: fenômeno cultural, moda e biopirataria

       O historiador Renato Venâncio lembra, que a história do café, tal qual a do açúcar, teve raízes no expansionismo das sociedades europeias. A diferença entre os dois produtos é, por assim dizer, cronológica. O café é tardio. A referência mais antiga a ele é de fins do século XV – portanto, duzentos anos após os primeiros contatos europeus com a cana-de-açúcar. De provável origem etíope, a rubiácea, de início, foi explorada comercialmente pelos árabes, que a consumiram e difundiram largamente. Em fins do século XVI, há indícios de que italianos e franceses passaram a comerciar café. Nos primeiros tempos, o produto era vendido em feiras, por ambulantes, “vestidos à turca (…) com o tabuleiro pendurado ao pescoço com cafeteira”.

      Por volta de 1615, na cidade de Veneza, registrava-se regularmente seu consumo; em Paris e Londres, o mesmo é observado em 1749-1750; na Suécia, os primeiros testemunhos de sua comercialização datam de 1674. Trata-se, como se vê, de uma expansão relativamente rápida para os padrões do Antigo Regime. Essa rapidez, contudo, não se traduziu imediatamente na multiplicação veloz do número de consumidores. De certa maneira, a popularização do café teve de esperar o século XVIII. Até então o produto era considerado um artigo exótico, restrito ao meio urbano, em sociedades nas quais 80% a 90% da população residia em áreas rurais.

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      O que teria levado, porém, à multiplicação dos bebedores de cafezinhos? Eis um tema bastante complexo. A primeira pista para entendê-lo relaciona-se com a própria natureza da planta em questão. A espécie exige apenas que o cultivo ocorra em áreas relativamente elevadas, úmidas e com temperaturas entre 20 e 25 graus, não devendo ser plantada em solos encharcados ou muito secos.

       O Coffea arabica é, portanto, um arbusto adaptável a vários lugares do mundo. Durante quase todo o século XVII, os europeus dependeram do fornecimento do café proveniente do comércio mediterrânico. Em determinado momento se percebe que vários territórios coloniais asiáticos ou americanos prestavam-se ao cultivo. Os holandeses foram os pioneiros. Em 1696, introduziram o cultivo de café em Java, que daí se expandiu para Sumatra, Timor e outras ilhas orientais. Por volta de 1710, Amsterdã recebe seus primeiros carregamentos de café asiático. Os franceses seguiram esses passos. Não demorou muito para que as colônias americanas também abrigassem a nova lavoura. Entre 1715 e 1721, estabeleceram-se os primeiros cafezais em Suriname e Guiana Francesa, daí se espraiando para as ilhas de São Domingos e Guadalupe.

     À medida que a produção aumentava, o preço declinava, permitindo a multiplicação de consumidores europeus. Mas, como diz Venâncio, a economia não explica tudo. Para entendermos o enorme sucesso que o café conheceu no mundo europeu, é necessário também percebê-lo como um fenômeno cultural, como uma nova “moda” de consumo, inclusive divulgada por meio de livros. O que dizem esses livros? Ora, quase sempre eles exaltam as propriedades e qualidades do café. A bebida era considerada um bom alimento. Ela reforçaria a concentração mental, ampliando a sensibilidade. Nos tratados médicos, afirmava-se que o café “seca todo o humor frio, expulsa os ventos, fortifica o fígado, alivia os hidrópicos por sua qualidade purificante, igualmente soberana contra a sarna e a corrupção do sangue, refresca o coração e o bater vital dele; alivia aqueles que têm dores de estômago e que têm falta de apetite; é igualmente bom para as indisposições frias, úmidas ou pesadas do cérebro”. Tratava-se, portanto, de uma “bebida maravilhosa”; porém, como todo remédio, ela deveria ser utilizada com moderação e equilíbrio; sublinhava-se que o consumo excessivo de café causava graves danos à saúde.

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      Outro motivo que estimulou o consumo de café se relaciona com o seu impacto social. Para entender isso, é necessário lembrar que, na Europa, tanto o café quanto o chá competiam com as bebidas alcoólicas. Tradicionalmente, as principais delas – o vinho e a cerveja – eram vistas com ambiguidade; condenava-se seu uso excessivo, mas, ao mesmo tempo, louvava-se sua importância como alimento – explica Venâncio.

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     No início do século XIX, o café tendia a se tornar mais barato, era exaltado por médicos e autoridades, assim como se integrava progressivamente ao cotidiano europeu. Tudo estava pronto para a explosão de seu consumo. Ela será detonada pela Revolução Industrial, multiplicadora de cidades e exigente quanto à concentração e sobriedade dos trabalhadores. Pois foi nesse contexto extremamente favorável que começou a despontar a produção comercial da rubiácea brasileira.

    Quando surgem nossos primeiros cafezais? A questão é controversa, segundo Venâncio. No Discurso sobre os gêneros para o comércio que há no Maranhão e Pará, Duarte Ribeiro de Macedo, em 1673, menciona a existência deles em regiões amazônicas. Bem mais aceita, porém, é a datação de 1727. Ela vincula-se às incursões militares do paraense Francisco de Mello Palheta, na fronteira da Guiana Francesa. De volta a Belém do Pará, o sargento-mor trouxe clandestinamente algumas sementes da espécie. A partir delas surgiram as primeiras mudas brasileiras. Do Pará, a planta se espraiou para o Maranhão.

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      Como se vê, o café surgiu entre nós como uma bem-sucedida empresa de biopirataria.

  • Texto de Mary del Priore. Adaptado de “Histórias da Gente Brasileira: Império (vol.2)”, Editora LeYa, lançamento no dia 19 de dezembro de 2016. Em breve, você poderá adquirir seu exemplar autografado por meio do blog HistóriaHoje.com. Aguarde!

 

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“Escravos carregando café”, de Jean-Baptiste Debret, 1826. Acima, “Café”, também de Debret.

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