Ao longo do século XIX, o Império mudou. Com a vinda da família real portuguesa, o processo de independência, o crescimento da economia cafeeira e a ampliação de cidades, as mulheres começaram a ganhar maior visibilidade. Emergia a noção de privacidade, importada da Europa. Não importava se as famílias eram nucleares, extensas ou múltiplas, mas sim um tipo de sentimento que impelia os parentes à coabitação. Difundia-se a mística da vida comum – partilhar espaços, gestos, tradições e sentimentos com os “seus” constituiu-se na tônica da família. A casa humilde ou o sobrado elegante modificaram os espaços. É evidente que os segundos se alteram em maior proporção. O mobiliário da época e os utensílios domésticos refletem essas modificações, e se sofisticam. As fronteiras entre o público e o privado ficam mais nítidas, favorecendo que os papéis exercidos nesses espaços também ganhassem maior visibilidade.
A Igreja e o Estado apostavam no sucesso do papel feminino. Dentro de casa, a mulher poderia comandar alianças, poderes informais e estratégias. Mas apenas dentro de casa. Na rua, era outra coisa. O risco da perda da honra crescia; conversas com homens eram inadmissíveis. Estar fora depois das Ave-Marias era sinônimo de se prostituir. A diferença entre as mulheres de casa, em geral casadas, e as da rua, trabalhadoras concubinadas ou sós, acentuava-se.
A maior parte das meninas não aprendia a ler. Passavam a meninice entre o oratório e a esteira. Ensinavam-lhes a fazer rendas, bordado e costura. Esperava-se que fossem incultas, piedosas, prisioneiras da casa. Amélia Beviláqua, escritora piauiense as retratou: “A menina era um corpo cansado, sempre encurvado na almofada. Não distraía o espírito, nem brincava porque era menina e devia estar sempre quieta”.
Sair? Só para ir à missa. As procissões eram acompanhadas das janelas para proteção da própria virtude. Namoros sem consequência, baseados em troca de olhares, suspiros e beliscões, eram a distração até o casamento arranjado. Maridos eram escolhidos pelo pai, segundo critérios econômicos e sociais, ou encomendados de Portugal. Para muitas, o matrimônio era um drama penoso: “À medida que o padre falava, sua voz se tornava fúnebre e as palavras ressoavam no salão como se ele abençoasse uma sepultura que ia se fechar […] quando ele uniu as mãos do casal, a noiva parecia quase desfalecer, seu rosto traduzia uma terna submissão diante da fatalidade das coisas”, descreve Amélia Beviláqua.
Se a esposa adoecesse, o marido é que a examinava, supervisionado pelo médico. A obstetrícia, baseada em conselhos de mães, ficava a cargo de parteiras, aparadeiras e comadres, pois preconceitos impediam os homens de exercê-la. O amor era considerado uma doença e havia emulsões de castidade para combatê-lo. As adúlteras estavam sujeitas a surras ou mesmo à morte.
A partir da segunda metade do século XIX, em nome da “civilização e da modernidade”, “pobres e desfavorecidos” passaram a ser alvo do Estado imperial. Queria-se adaptá-los aos padrões culturais europeus. Enquanto as cidades eram reurbanizadas, a população passou a ser disciplinada, reeducada. Daí a preocupação com a conduta moral, a saúde, a vida sexual dos casais e, como veremos mais à frente, dos solteiros.
Tanto a Igreja quanto o Estado reclamavam a necessidade de o “amor” do casal estar vinculado à sexualidade e à procriação. O Estado acreditava que do bom desempenho sexual dos cônjuges “dependia a saúde dos filhos, a moralidade da família e, sobretudo, o progresso populacional da nação”. A Igreja católica, por sua vez, continuava a reafirmar o ideal de família cristã: evitar filhos era considerado desobediência e, portanto, pecado.
Tal família era inteiramente subordinada à figura do pai. Rei em casa, ali ele representava o Estado e a Igreja. Da mulher, além de submissão, esperava-se que exercesse plenamente a função de procriar e transmitir aos filhos valores morais e éticos; dos filhos, que aceitassem todas as regras, tanto afetivas quanto disciplinares, sem procurar questioná-las.
Se por um lado as diversas formas de família iriam conviver ao longo de mais de 350 anos, por outro, o casamento seguiria sendo a chave para distinguir diferenças – as diferenças entre as mulheres. Uma política comum uniu Igreja e Estado no combate às ligações ou “tratos ilícitos”. O concubinato era vivido como algo que se fazia “na rua”. A adoção do modelo imposto pela Igreja ajudou a construir os papéis femininos no imaginário social. Esposas: mulheres corretas. Concubinas, imorais, que viviam “meretrizmente”, cúmplices de “tratos ilícitos”: as erradas. – Mary del Priore
“O Importuno”, tela de Almeida Júnior, de 1898.
Muito bom conhecer as nossas raizrs.
Cara autora, eu gostei bastante de ler seus livros,mo momento estou acompanhado seu blogger.Abraço.