Os jesuítas, a escravidão indígena e a disputa pelo poder

Por Márcia Pinna Raspanti.

 

No final do século XVII, as divergências entre os membros da Companhia de Jesus podem ser observadas mais claramente nos escritos de dois religiosos bastante conhecidos e estudados até os dias de hoje: o português Antônio Vieira e o italiano João Antônio Andreoni (ou André João Antonil, autor de “Cultura e Opulência do Brasil”, de 1711). Os dois se  posicionaram em lados opostos da polêmica sobre a escravidão indígena.

            Vieira e Andreoni lideravam dois grupos que brigavam pelo poder dentro da corporação: os portugueses e os estrangeiros (não portugueses). A divisão também era bastante visível quando o assunto era escravidão indígena, pois, Vieira e os padres portugueses não aceitavam que os nativos fossem escravizados pelos colonos, mantendo a política tradicional da ordem inaciana; por outro lado, Andreoni e os “estrangeiros” apoiaram os moradores. A posição dos não portugueses foi uma novidade dentro da Companhia. Até então, os jesuítas defendiam a catequização dos gentios, por meio dos aldeamentos e missões.

          A lei de primeiro de abril de 1680 entregava aos jesuítas a administração espiritual dos nativos e a formação das missões. Os paulistas não concordavam com a lei e queriam a escravização dos gentios. Andreoni, juntamente com Jorge Benci, Jacob Rolland, entre outros, posicionou-se ao lado dos paulistas, influenciando o Geral da Companhia, o espanhol Tirso González, na mesma direção.

            Os jesuítas iniciaram um longo processo de negociação com os colonos acerca da administração dos índios. Em 1692, Andreoni, como secretário e consultor do Provincial Alexandre de Gusmão, redige as “Dúvidas que se oferecem pelos moradores da Vila de São Paulo à Sua Magestade, e ao senhor governador de estado, sobre o modo de guardar o ajustamento da administração na matéria pertencente ao uso do gentio da terra, cuja resolução se espera”.

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Em 1694, em São Paulo, surgem as novas Administrações dos Índios, com anuência do P. Alexandre de Gusmão e assessoria jurídica de Andreoni. Neste acordo, os paulistas recebiam o direito à administração das aldeias e, em troca, se comprometiam a abrir mão das entradas no sertão. Vieira fica contrário as Administrações por entender que estavam favorecendo os paulistas.

Em resposta Vieira escreve, em 1695, o Voto sobre as dúvidas dos moradores de São Paulo acerca da administração dos índios. Nesta carta, critica a posição dos padres estrangeiros que apoiavam a escravização. A vitória acabaria sendo dos colonos. Em 1696, uma carta régia concedia a administração dos índios aos moradores de São Paulo. Deve-se lembrar que toda esta polêmica aconteceu  em um ambiente de crise econômica que afetava tanto a Colônia como a Metrópole, na segunda metade do século XVII.

O Brasil estava relegado a segundo plano em comparação às Índias de Castela. Aqui os metais e pedras preciosos só começariam a aparecer no início do século XVIII, o que não estimulava o tráfico negreiro. O maior fluxo de escravos africanos, inclusive o contrabando praticado pelos portugueses, estava direcionado às riquezas das Índias.

Havia uma carência de mão de obra no País, fato que desesperava os colonos, já que o preço dos escravos havia subido muito. Com a descoberta das minas, a situação não se modificou: aumentou o número de “peças” que chegavam ao País, mas, a maioria era vendida aos mineradores. Isto ameaçava as lavouras, pois, na incapacidade de prosseguir com as plantações, os colonos vendiam seus negros para amenizar a crise.

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Não se pode perder de vista os interesses existentes em ambos os lados da questão. A Coroa Portuguesa, que  em um primeiro momento apoiou as iniciativas missionárias dos jesuítas, necessitava dos índios para defesa e ocupação do território. Os colonos tinham uma preocupação mais imediata: precisavam de braços para a lavoura.

Apesar da inegável simpatia que a posição de Vieira exerce sobre o homem de hoje, não se deve esquecer que suas posturas sempre visaram o progresso de Portugal e o engrandecimento de sua economia. É preciso, portanto, examinar a polêmica da escravidão indígena buscando mergulhar profundamente na moral da época — quando a escravidão era um fato existente na sociedade, cuja validade não era nem mesmo questionada.

As rixas internas à Companhia, como a disputa de poder entre os portugueses e os estrangeiros, estão estreitamente ligadas às divergências quanto à “polêmica indígena”. Não se pode afirmar, entretanto, que foram estas questões as causas da postura adotada por Andreoni e os outros. Aos historiadores resta apenas formular hipóteses, baseadas nos documentos existentes: o certo é que a convivência entre os grupos não era harmônica e os interesses de ambos estavam em jogo.

Alguns estudiosos, criticam Andreoni e seu grupo por se prenderem a aspectos puramente econômicos na defesa da escravização do indígena. Enquanto Vieira estaria mais alinhado aos propósitos religiosos e piedosos da Companhia. Tal postura não leva em conta a moral do período, quando aquilo que hoje chamamos de “econômico” estava intrinsecamente ligado à moral.

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É preciso refletir sobre o significado do termo economia no período colonial. Rafael Bluteau, lingüista português do século XVII, autor de “Vocabular Portuguez e Latim”, explica que Economia (Economica ou económica) “deriva-se do grego oicos, casa, e do verbo Nemein, reger, governar. Economica é a que ensina o governo e regimento regular da casa, família e administração.”

A economia foi vista como a arte de governar bem a casa, no ocidente europeu, até meados do século XVII. A Colônia era escravista e cristã, ou seja, no ideal jesuíta a relação entre senhores e escravos deveria seguir o modelo europeu, monárquico e patriarcal.

Economia, política, moral e religião eram indissolúveis entre si, o que significa que a polêmica não ser simplificada em termos maniqueístas, dividindo-se os grupos entre bons e maus religiosos. Em uma sociedade fortemente hierarquizada, talvez houvesse dificuldade em se encontrar o lugar ideal para ser ocupado pelos gentios. Onde encaixar o indígena, que possuía cultura e costumes tão diferentes das práticas europeias? Escravos ou súditos, almas inocentes a serem convertidas ou pagãos incorrigíveis? Os jesuítas pareciam não se entender quanto às respostas.

  • Texto de Márcia Pinna Raspanti.
carlos julião índios

Duas figuras de índios, por Carlos Julião, século XVIII. Fundação Biblioteca Nacional

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