As babás, as mucamas e o clube “de elite”

          Há alguns dias, um jornal publicou uma reportagem sobre um dos clubes mais sofisticados e caros do Rio de Janeiro. O foco era o tratamento dado às babás dos filhos de sócios. Descobrimos, um tanto chocados, que elas não podem usar o banheiro das mulheres adultas, porque, segundo explicou o representante do clube, as sócias deixam os seus pertences no local (?!). Uma frequentadora, que não quis se identificar, afirmou que gosta muito das moças que trabalham ou trabalharam para ela. Entretanto, lembrou ela, é preciso haver “ordem”, cada qual deve ocupar o seu lugar para evitar confusões. E, ainda acrescentou que essas profissionais “não têm educação”, nem noções básicas de higiene, deixando os banheiros “sujos”. Outra queixa, é que as “empregadas abusam”, comprando “pratos caros”, com a desculpa de ser para as crianças, mas elas é que querem comer, ou então, se aproveitam da situação para passear pelas dependências “como se fossem sócias”.

        As babás foram ouvidas também. Elas contaram que não podem se sentar nos pufes da sala de televisão, o que dificulta o seu trabalho já que as crianças costumam adormecer no seu colo. Elas são obrigadas a vestir branco e enfrentam uma série de restrições no acesso às dependências do clube. Quanto aos banheiros das sócias, pode acontecer de uma ou outra babá usá-los  em caso de “extrema emergência”, mas os olhares de reprovação são tão constrangedores que elas evitam ao máximo. A queixa mais triste, na minha opinião, é de que elas se sentem invisíveis, pois os frequentadores nunca as cumprimentam ou falam com elas, a não ser os seus patrões ou as crianças.

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       Falando de forma objetiva, as babás são acusadas de serem desonestas, mal educadas e sem higiene. Entretanto, são essas mesmas profissionais que cuidam dos filhos dos sócios. Será que essas famílias de alto poder aquisitivo confiariam seus filhos a pessoas assim tão desqualificadas? Afinal, os empregados domésticos desfrutam da intimidade dos patrões, circulam pelas suas casas, dormem no quarto ao lado (ou nos fundos). Será que o motivo seria realmente a desconfiança em relação ao caráter dessas mulheres? Penso que não é apenas isso.

      Para mim, é uma questão de hierarquia, como disse a sincera senhora ouvida pela reportagem, “de ordem”, de cada um saber o seu lugar. As babás precisam circular pelo clube para cuidar das crianças, mas é muito importante que elas não sejam confundidas com os sócios, é preciso marcar a grande distância que os separa. Esse tipo ranço nos remete à própria formação da sociedade brasileira, ao modelo que foi implementado nos tempos do Brasil Colônia. Nesse período, se formou uma classe que buscava assemelhar-se aos nobres da Metrópole. Instalou-se, no Brasil, um sistema patriarcal, baseado na posse da terra e no conceito de cor. A aquisição da terra era obtida pela riqueza pessoal, pelas boas relações de família, ou através do casamento.

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      Segundo Stuart Schwartz, durante todo o período colonial, o ideal de nobreza foi muito presente na sociedade brasileira. O status nobiliárquico era medido por um comportamento que ia além da simples administração correta e adequada dos bens. Laima Mesgravis ressalta que havia a tentativa de instituir o projeto nobiliárquico metropolitano na Colônia; a classe dominante colonial, neste sentido, seguiria o modelo, ainda que de forma adaptada, de outra realidade, da nobreza europeia. Devemos ter em mente, contudo, que a sociedade não funcionava de acordo com esse modelo idealizado e almejado pelos grupos dominantes: os pobres não se conformavam com sua condição, os cativos resistiam de várias formas, os mestiços buscavam ascensão social, havia uniões entre brancos, negros e índios.

       Para tentar se destacar nessa trama social complexa, a ostentação e a “presunção de fidalguia” eram muito presentes na sociedade colonial. De acordo com Emanuel Araújo, não era suficiente ganhar muito dinheiro e comprar propriedades, era preciso ser reconhecido e admirado como pessoa de “fino trato”, pois a fidalguia era importante quando a nobreza de sangue correspondia a um lugar no topo da pirâmide social.  Essa classe mais abastada procurava se manter  no topo, sem abrir mão de seus privilégios, mantendo-se unida e legislando a seu favor.

       Neste mundo construído sobre a ideia da hierarquia, a paz e a harmonia deveriam ser alcançadas se os grupos sociais se mantivessem dentro de seus limites. O conflito deveria ser evitado, pois implicaria a quebra da hierarquia estabelecida. A hierarquia não podia ser quebrada: ser e parecer se confundiam nesta sociedade. Os inferiores não podiam de forma alguma questionar a autoridade dos superiores, por isto, era imprescindível que estes se comportassem adequadamente. Outra preocupação dos mais abastados era se manter distante da “arraia miúda”, dos mais pobres que tentavam de todas as formas ostentar alguns dos símbolos de riqueza: escravos, joias, roupas de luxo, cavalos.

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       O tema é desagradável, nos faz enxergar os resquícios da nossa sociedade escravista e supostamente hierarquizada. Sombras do passado que preferimos não ver: nesse clube de elite, temos um retrato sem retoques desse anseio por status e hierarquia que a sociedade brasileira ainda persegue. As babás de hoje têm muito em comum com as mucamas de antigamente que cuidavam dos filhos de senhores de engenho, de barões do café, de traficantes de escravos e de comerciantes de “grosso trato”. Obviamente, não estamos falando de questões trabalhistas, mas de heranças culturais, e dessa ambiguidade que sempre envolveu as relações entre os empregados domésticos e seus patrões no Brasil, como já nos contava Gilberto Freyre.

        Não, elas não são “quase da família”, são profissionais, que merecem ser respeitadas e têm suas próprias famílias.

  • texto de Márcia Pinna Raspanti.

 

amams

Imagem: IMS.

 

 

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