O corpo ideal na lógica capitalista

            Dividido entre servidão e liberdade, o corpo nunca teve tanta visibilidade. Como bem disse o professor de Medicina Social, Jurandir Freire Costa, “Nenhum indivíduo, em nenhuma sociedade se contentou em nascer e morrer com o corpo que tem”. Mas, a dimensão corporal se tornou um tema das sociedades contemporâneas, e ele explica que, desde os anos 80, uma série de problemas clínicos, antes desconhecidos, começou a surgir: o fisiculturismo compulsivo, a bulimia, a obesidade mórbida, a anorexia e a extrema obsessão com a aparência passou a se tornar evidente, forçando o corpo a se exprimir de modo inédito. Ele se tornou parte integrante da identidade dos indivíduos. E mais, integrou o mundo do trabalho. A competição, a globalização, o bombardeio de conceitos e fotos em revistas e telas passaram a exigir mais e mais das aparências. Afinal, a “imagem corporal”, feita exclusivamente de gente sorridente, saudável, bonita e jovem, levou a melhor.  Gordo? Nem pensar. Calvo, idem. Estresse e úlcera deviam ser combatidos com exercícios. As despesas com aparência física triplicaram. O verbo “malhar” integrou o vocabulário das classes médias.

            Antes mesmo, ao final dos anos 70, a revista Veja já trazia explosivas matérias sobre a “Dietomania”: a ginástica da Força Aérea Canadense, testes de Cooper, internamento em clínicas de endocrinologia, a Dieta Revolucionário do Dr. Atkins, tudo era válido para entrar em forma. Beber vinagre ou tomar uma colher de azeite após as refeições, beber água com limão, usar Bel-Linha ou tomar banhos de parafina também faziam parte das soluções mágicas para ficar na linha. Tinha até sabonete milagroso: o Magripele! Mas, atenção! Viver a base de pílulas emagrecedoras – os tabletes de Fucus composto eram moda -, gotas e chás, levava ao desmaio. A obesidade começava a ser discutida por autoridades e encarada como um problema de medicina social. Maus hábitos alimentares hereditários eram apontados de dedo. Afinal, “ser gordo” era uma tortura e nunca, uma opção.

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Ou um vício – “pois o paciente tinha que se ajudar! Havia os que sofriam de falta de vergonha na cara. Eram glutões”! Problemas endocrinológicos ou os psicológicos eram debatidos por especialistas. Colônias de férias exclusivas para gordos eram propostas para os tímidos que se envergonhassem em expor suas “maminhas”. Nas estantes, acumulavam-se livros de receitas com fórmulas alimentares emagrecedoras. A dietética era uma das soluções: quibes, por exemplo, eram altamente recomendados. Aparelhos de uso doméstico como o Rolomag e o Vibra-Esbelt, vendidos nas boas casas do ramo, prometiam combater a celulite e a gordura localizada. O conhecido comediante Jô Soares era exemplo: perdera 85 quilos, em dez meses, entre 1972 e 1973, mão não dava sua receita. Divulgavam-se tabelas com peso ideal. Tinha início a caça aos gordos!

E, como explicou Jurandir Freire Costa, “Vivemos numa sociedade de tudo, menos de prazer. O espetáculo, a publicidade, a visão de mundo hegemônica dizem: goze, goze, goze… Agora daí a gozar…É outra história! Só estamos autorizados a comer meia folha de alface. Temos que nos matar de exercícios físicos, fazer palavra cruzada para evitar Alzheimer. Check-up cinco vezes por ano. […] É um medo pavoroso do câncer […] o sujeito não pode usufruir de nada, absolutamente nada disso. Ele vai ficar com medo do colesterol, de ser olhado como um estulto, um irresponsável pelos amigos. “Neurótico, não cuida de si, Vai fazer psicanálise, ioga”. Então, abre-se mão do prazer, que se tornou, paradoxalmente, algo extremamente escasso. E isso numa cultura que se auto-representa como hedonista”. 

           Entre as mulheres, o paradoxo entre gozar e sofrer teve como cenário as academias de ginástica.  Nos anos 70, desembarcaram no Brasil, junto com a moda das bonecas Barbie, numerosas máquinas e técnicas do corpo, instrumentos de um verdadeiro marketing de vivências corporais: o body business. O corpo numa sociedade de abundância industrial tinha uma nova tarefa: ser um corpo consumidor, e pior, consumidor em cada uma das suas partes individualizadas e cuidadas. Para as unhas, esmaltes e lixas. Para os cabelos, xampus, tinturas, secadores. Para o corpo, bronzeadores, hidratantes, sabonetes cremosos e desodorizantes. Difundindo padrões de beleza, as imagens publicitárias de produtos nunca dantes vistos, refletiam-se no público feminino. Nascia a imagem do corpo livre e liberado. Um corpo sem cicatrizes, um corpo sorriso, um corpo publicitário. Ironicamente, diz a psicóloga Joana Novaes, um corpo que ao buscar incessantemente a sua originalidade, apagava-se na regra coletiva: a do anúncio. A publicidade nas telas e revistas embutia, em relação a essas que não se encaixavam nos padrões estéticos, uma ideologia de fracasso, de impotência frente ao próprio corpo.

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          Mas o culto não era para todos. O tal corpo adorado era um corpo de “classe”. Ele pertencia a quem possuía capital para frequentar determinadas academias, tinha “personal trainers”, investia no “body fitness” sendo trabalhado e valorizado até adquirir as condições ideais de competitividade que lhe garantissem assento na lógica capitalista. Quem não o modelava, estava excluído dos padrões vigentes. O artifício, segundo Joana Novaes, era esperto em termos econômicos, uma vez que inseria em outro tipo de mercado consumidor, toda uma camada da população feminina privada dos serviços de academias de ginástica e de práticas dispendiosas. O canal de TV “shoptime” e os catálogos a domicílio, com todas as ofertas a preços populares, de aparelhos para “tirar a barriga”, cremes para celulite, pastas emagrecedoras, “steps” esteiras domésticas, eram exemplares para ilustrar a lógica de mercado nos anos 80 e 90. O modelo, segundo a psicóloga, visava a gratificação imediata, prometendo à consumidora que nada lhe seria negado. A beleza era vendida como uma promessa para todas e todos!

             Ter um corpo trabalhado, explica Novaes, estava na ordem do dia e não era a toa que o verbo mais empregado era “malhar”. Malhar como se malha o ferro, malhar significando o intenso esforço embutido no verbo. Trabalhar diferentes partes do corpo que precisassem ser modificadas. Do joelho ao culote, do braço à panturrilha, o corpo era visto como fragmento; cada parte podendo ser reesculpida, consertada, desconectada de um todo.

  • Texto de Mary del Priore.
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3 Comentários

  1. Mundo Feminino
  2. Verônica

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