Por Lilia Ferreira Lobo.
Bem antes da utilização dos asilos de leprosos da Europa para recolher a massa de desvalidos, delinquentes, loucos e defeituosos, o Brasil, assim como todas as colônias europeias, foi usado como depósito dos indesejáveis, como lugar de degredo para grandes e pequenos criminosos, para os heréticos, pecadores da carne, ciganos, prostitutas, funcionários corruptos e, principalmente, escravos africanos. Um grande internamento, não apenas pela quantidade de gente que recebia, mas pelas dimensões da terra que, ao contrário do asilo, era uma prisão sem muros, com obstáculos intransponíveis do oceano imenso de um lado e das tenebrosas florestas de outro – para muitos, um exílio sem retorno. O espaço homogêneo da exclusão, desocupado pelo leproso, também será preenchido aqui por essa massa indiferenciada dos perturbadores da ordem social, relegada ao abandono na nova terra. Todavia, cumpre observar que, à diferença dos estabelecimentos europeus destinados ao isolamento dos indesejáveis, o Brasil era um território conquistado e precisava de habitantes. A exclusão na América ganhou, por isso, outros sentidos: explorar a terra, sedimentar e aumentar a conquista, obter ganhos e cristianizá-la. Ao mesmo tempo que servia de purgação para os males do reino, o degredo preenchia os vazios da terra e, aos poucos, ia desenhando heterogeneidades no abandono a que foi relegada. Logo surgiram, então, mecanismos de controle, como as visitas inquisitoriais e seus comissários, além das iniciativas leigas de caridade, como a Irmandade da Misericórdia.
Enquanto na França, em 1690, a Salpetrière abrigava mais de 3 mil pessoas, grande parte constituída de indigentes, loucos e vagabundos, no Brasil, essa mesma classe de gente ficaria por muito tempo fora dos asilos. A não ser os heréticos e os pecadores da carne, sob a mira dos comissários da Inquisição, os demais perambulariam pelas estradas, pelas periferias das vilas, com passagens eventuais pelas cadeias, caso exibissem comportamento reprovado ou agressivo e, próximo do século XIX, nas celas de doidos das Santas Casas. Um pouco semelhante ao que aconteceu na Idade Média: embora vistos com desconfiança, desde que não perturbassem a ordem, poderiam circular livremente. Parece que até meados do século XVIII, quando começaram a ser construídos os primeiros lazaretos no Brasil, nem mesmo os leprosos, apesar de evitados pela população, estavam sujeitos à exclusão em estabelecimentos fechados. Assim, os primeiros espaços especializados de separação (exclusão por inclusão) para as algumas categorias de excluídos (loucos, cegos, surdos, mendigos) só aparecerão em meados do século XIX.
O Estado liberal, que tem por objetivo gerir a população e cuja origem remonta ao século XVIII na Europa, desenvolve-se no Brasil no século XIX, com a importante e pertinaz intervenção do poder médico. Entre outros instrumentos, as práticas da recém-inaugurada medicina brasileira são um dos braços do biopoder na construção de sujeitos individualizados, segundo o modelo da norma burguesa para as condutas, e de uma sociedade controlada por dispositivos de segurança. Para isso, disciplinas e estatísticas são preciosos aliados: a primeira organizando individualmente o espaço, demarcando o tempo e a precisão de cada movimento dos corpos, e a segunda fotografando a figura da população de corpo inteiro, revelando sob as lentes do detalhe sua imperceptível anatomia.
Essa foi a tarefa iniciada, ainda que precariamente, com um censo em 1808, conforme o Resumo histórico dos inquéritos censitários no Brasil de 1920, cujos resultados não mereceram crédito por ter sido feito para fins militares. A população via com desconfiança, senão revolta, as tentativas de recenseamento por parte do governo. Foi o que ocorreu nos estados do Nordeste, “onde foi preciso reprimir os motins pelo emprego da força armada”, onde a lei censitária de 1851 fora tomada como medida governamental de reescravização dos homens livres de cor. Havia muito, os donos de terra tentavam a aprovação do trabalho compulsório, e o decreto determinando o registro dos nascimentos e dos óbitos segundo a cor fez eclodir as revoltas.
Finalmente, em 1872 deu-se a execução de um recenseamento estatisticamente confiável, pouco depois da criação da Diretoria-Geral de Estatística, por decreto de 1871. Foi também o primeiro censo que, além de esquadrinhar a população conforme a raça (brancos, pardos, pretos e caboclos), sexo e a condição de livres ou escravos, distinguia por categorias as pessoas consideradas defeituosas: cegos, surdos-mudos, aleijados, dementes e alienados, em um total de 83.621 para 9.930.478 habitantes, número este posteriormente corrigido para 10.112.081.
Depois do censo de 1872, outros procuraram incluir categorias de defeitos físicos, como os de 1890, 1900 e 1920 – este último arrolou somente cegos e surdos-mudos. A justificativa para considerar como critério relevante a inclusão de um defeito físico nos quesitos do inquérito pode ser encontrada em um relatório oficial sobre o censo de 1890, utilizada também no de 1872. Em ambos, o objetivo era verificar os índices de invalidez para o trabalho:
“Procura-se com esta pesquisa conhecer a parte inválida de uma população para o trabalho comum e em certas regiões ela até abrange acidentes patológicos. O recenseamento de 1872 a incluiu no seu questionário”.
No relatório oficial do censo de 1890, encontra-se a marca do saber psiquiátrico na maior precisão das categorias e nos critérios de invalidez para o trabalho:
“Na exposição de motivos do plano que propôs e foi seguido, o dr. Timótheo da Costa preferiu, por mais apropriado, o termo idiota ao termo demente, adotado em 1872, suprimiu a alienação mental, por ser moléstia de possível cura, e acrescentou surdez, causa orgânica de inabilitação parcial. Ou seja: idiotas não eram mais dementes, e loucos não eram mais inválidos“.
Dos poucos documentos encontrados, extraem-se observações interessantes, ainda que provisórias. Em primeiro lugar, a insistência médica na curabilidade da alienação mental, o que supunha a possível reabilitação para o trabalho e a consequente incurabilidade dos demais defeitos físicos. Em segundo, a existência dos estabelecimentos oficiais para educação de cegos e surdos (Instituto Benjamin Constant e Instituto Nacional de Surdos-Mudos, respectivamente), ambos com quase quarenta anos de funcionamento em 1890, não foi suficiente para alterar os critérios de inabilitação para o trabalho – cegos e surdos continuaram incuráveis. Por último, a constatação de que os índices dos considerados aleijados (sem distingui-los entre mutilados, deformados ou paralíticos) atingiam quase a metade dos considerados defeituosos, sem que se saiba que houvesse qualquer iniciativa pública ou privada para a recuperação dessas pessoas.Sob esse ponto de vista, o Brasil permaneceu atual. No século XIX, a França, com raras exceções, não dispensou melhor tratamento aos seus incuráveis.- Lilia Ferreira Lobo.
Excelente artigo. Um tema interessante e bem apresentado.