Nudez e objetificação das “morenas da terra”

       Misoginia e racismo no processo da colonização

 

      História da indumentária, algo fútil? Nunca. Muitas questões podem ser respondidas pelos historiadores quando se remexe o fundo dos baús. As matérias primas, os procedimentos de fabricação, os custos, a moda, as hierarquias sociais através das aparências, são algumas delas. A roupa definia, então, os lugares sociais. A usada dentro de casa, raramente saia à rua e vice-versa. Leis suntuárias, em Portugal chamadas de Pragmáticas, definiam os limites do luxo e regulavam hábitos de consumo.

     O problema, porém, não se colocava para quem andava nu ou semi-nu, caso de nossos ancestrais indígenas. As referências à despreocupação vestimentar são constantes nos cronistas coloniais. A começar por Pero Vaz de Caminha que gravou em tom impressionado, voltando várias vezes ao assunto: “acudiram pela praia […] vinte homens, pardos, todos nus, sem nenhuma coisa que lhes cobrisse as vergonhas”. Ou “andam nús, sem nenhuma cobertura”. Em 1584, o jesuíta Anchieta registrava algumas leves mudanças:

      “Os índios da terra de ordinário andam nús e quando muito vestem alguma roupa de algodão, ou de pano baixo e nisto usam de primores a seu modo, porque um dia saem com gorro, carapuça ou chapéu na cabeça e o mais nú; outras vezes saem com seus sapatos ou botas e o mais nu, outras vezes trazem uma roupa curta até a cintura sem mais outra coisa. […] As mulheres trazem suas camisas de algodão soltas até o calcanhar sem outra roupa e os cabelos quando muito entrançados com uma traçadeira de fita de seda ou de algodão; mas homens e mulheres de ordinário andam nus e sempre descalços”. Menos sizudo, o capuchinho Claude d´Abbeville, achava tudo isso “cômico”!

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       No início, impressionou a beleza de nossas índias: pardas, bem-dispostas, com cabelos compridos, andando nuas e “sem vergonha alguma”. A Caminha não passou desapercebidas as “moças bem moças e bem gentis, com cabelos muito pretos compridos pelas espáduas”. Seus narizes, segundo o mesmo narrador, eram “bem feitos” assim como tinham “bons rostos”. Os corpos, “limpos e tão gordos e tão formosos que não pode mais ser”. As tupinambás se pintavam de tinta de jenipapo, “com muitos lavores a seu gosto […] e põem grandes ramais de contas de toda a sorte nos pescoços e nos braços”, segundo informa, em 1587, Gabriel Soares de Souza. Já o capuchinho Yves D’Evreux, acentuava seu gosto pelos banhos e por pentear-se “muitas vezes”.

        Os cânones da beleza europeia se transferiam para cá, no olhar guloso dos primeiros colonizadores. Durante o Renascimento, graças à teoria neoplatônica, amor e beleza, caminhavam de mãos dadas. Vários autores, como Petrarca, por exemplo, trataram desse tema para discutir a correspondência entre Belo e Bom, entre o visível e o invisível. Não é a toa que nossas indígenas são consideradas, pelos cronistas seiscentistas, criaturas inocentes. Seu despudor era lido numa chave de desconhecimento do mal, ligando, portanto, sua “formosura” à ideia de pureza.

       É bem verdade que as características de nossas belas estavam um tanto distantes do modelo renascentista europeu. Os grandes pintores do período – por exemplo, Veronese, o veneziano – preferiam mulheres de cabelos claros, ondulados ou anelados, com rosto e colo leitoso como pérola, bochechas largas, fronte alta, sobrancelhas finas e bem separadas. O corpo devia ser “entre o magro e o gordo, carnudo e cheio de suco”, segundo um literato francês. A “construção”, como se dizia, então tinha que ser de boa carnadura. A metáfora servia para descrever ombros e peito forte, suporte para seios redondos e costas onde não se visse um sinal de ossos. Até os dedos afuselados eram cantados em prosa e verso, dedos de unhas rosadas finalizadas em pequenos arcos brancos. Joias e pedrarias, bem diversas dos ramais de contas e da tinta de jenipapo que recobriam nossas índias, reafirmavam o esplendor da união entre elementos anatômicos e elegância.

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          Gilberto Freyre foi pioneiro em captar o interesse dos portugueses, não pelo modelo clássico que acabamos de descrever, mas pela “moura encantada”: tipo delicioso de mulher morena de olhos pretos, segundo ele, envolta em misticismo sexual – sempre de encarnado, sempre penteando os cabelos ou banhando-se nos rios ou nas águas de fontes mal-assombradas – que os lusos vieram reencontrar nas índias nuas e de cabelos soltos.

         “Que estas tinham também os olhos e os cabelos pretos, o corpo pardo pintado de vermelho e, tanto quanto as nereidas mouriscas eram doidas por um banho de rio onde se refrescasse sua ardente nudez e um pente para pentear o cabelo. Além do que, eram gordas como as mouras”. Ele lembra ainda, que enquanto, em terras brasileiras, prevalecia o modelo moreno, em Portugal, a moda italiana vingava. Lá, na época de Felipe II, as mulheres “das classes altas tingiam os cabelos de cor loura, e lá na Espanha, várias arrebicavam o rosto de branco e encarnado para tornarem a pele, que é um tanto, ou antes, muito trigueira, mais alva e rosada, persuadidas de que todas as trigueiras são feias”. Segundo Freyre, poder-se-ia afirmar que a mulher morena era a preferida dos portugueses para o amor físico.

  • Mary del Priore. “História da Gente Brasileira, vol. 1: Colônia”, Editora LeYa, 2016.
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Jean-Baptiste Debret.

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  1. Rodrigo da Silva

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