Nos tempos do Brasil Colônia, índias e negras andavam seminuas. Ambas tinham, contudo, condições de transformar sua nudez em objeto estético. Todo um código artístico era inscrito na substância corporal através de técnicas arcaicas: pinturas faciais, tatuagens, escarificações, que as transformavam em obras de arte ambulantes, em “quadros vivos”. Não escaparam a Gilberto Freyre seus sinais de nação, as tatuagens africanas ao longo do nariz, os talhos imitando pés de galinha, na testa e nas faces, “talhinhos ou recortes, verdadeiras rendas, pelo rosto todo”. As orelhas furadas, para argolas ou brincos, também eram uma constante. As iaôs, de rituais religiosos, tinham direito às pinturas corporais.
No corpo, valorizavam-se as nádegas arrebitadas para trás, empinadas e salientes, a “bunda grande”, – palavra quimbundo para designar o que os portugueses chamavam de “nadeguda”! Os peitos valorizados eram os pequenos e duros, a ponto de haver uma lenda recolhida por Nina Rodrigues, sobre o assunto: uma mulher, muito grande e valente tinha peitos tão grandes que caiam pelo chão. Depois de um embate com guerreiros inimigos, na floresta onde morava, foi morta, despedaçada e cozida pelas mulheres da mesma tribo. “Então, diz o conto, cada qual tratou de apoderar-se de um pedaço do peito; as que puderam apanhar um pedaço grande tiveram os peitos muito grandes, as que só alcançaram um pedacinho, ficaram de peito pequeno, e é por isso que as mulheres não têm peitos do mesmo tamanho”. A gigante de peitos grandes e caídos, entidade maléfica, era também critério de feiura na cultura africana.
Os anúncios de jornal, notificando a fuga de escravos, informavam sobre as características físicas de nossos avós negros: a cor “preta”, “alva ou fula da pele”; os cabelos encarapinhados, crespos, lisos, anelados, cacheados, acaboclados, russos, assa, avermelhado e até louro. Nas mulheres, cabelos que eram cuidadosamente arranjados em birotes, tranças, coques. Cabelos “agaforinhados com pentes de marrafa dos lados” ou alisados com óleo de coco. Os dentes quase sempre inteiros e alvos podiam ser “limados” ou “aparados”. As deformações profissionais deixavam marcas nas mãos, pés e pernas e os vestígios de chicote pelo corpo não eram escamoteados: “nas nádegas marcas de castigo recente” ou “relho nas costas”. Os olhos podiam ser “na flor do rosto”, grandes, castanhos ou “tristonhos”. Podiam ainda, piscar “por faceirice”, enquanto a negra falava. De muitas se dizia “ter boa figura”, ser “uma flor do pecado”, ser “alta e seca”, “bem-feita de corpo” ou simplesmente robusta. “Ter peitos em pé”, “peitos escorridos e pequenos’, “nariz afilado e pequeno”, “peitos em pé e grandes”, “pés e mãos pequenas”, era sinal de formosura que podia impressionar o comprador.
O peito feminino era também o lugar de sinais de nação ou marcas. A negra rebolo que, em 1840, desaparecera da casa de seus senhores, informa-nos Freyre, trajava “vestido azul com flores amarelas”, ostentava “argolas de ouro pequenas nas orelhas” e levava no peito esquerdo a marca MR”. Mas, ele, também seduzia: “o busto de basalto negro”, encantou o olhar do viajante Robert Avé-Lallemant.
Os vistosos panos da costa, turbantes e rodilhas, xailes amarrados a cabeça, saias rendadas, camisas abertas de renda e bico e chinelinhas vestiam muitas cativas. Uma poesia de Melo Moraes Filho enfeita a mulata ou a negra com muitos dos adereços utilizados pelas brancas: camisa bordada, fina tão alva arrendada, torso de cassa à cabeça, corais engrazados nos pulsos, saias de rendas finas, brincos de pedrarias, correntinha de prata. E suas palavras exprimem o ciúme das últimas: “Eu sou mulata vaidosa, linda faceira, mimosa, quais muitas brancas não são! ”. Para arrematar, “minhas iaiás da janela, me atiram cada olhadela, Ai dá-se! Mortas assim… E eu sigo mais orgulhosa, como se a cara raivosa, não fosse feita p’rá mim”. – Texto de Mary del Priore.
Índia, de Debret.