Algumas mulheres saíram do anonimato a que lhes condenou a história. Veja-se, por exemplo, o caso de Benta Teixeira. Filha de padre e nascida em Campos em 1675, proprietária de terras e de um pequeno engenho, ela liderou a luta de pequenos produtores contra os descendentes do filho de Salvador Correia de Sá, o quarto visconde de Asseca. As reuniões dos insurgentes se davam constantemente em sua casa. Na época do conflito armado, Benta era viúva e mãe de filhos adultos. Ela investiu a cavalo e armada contra os representantes do visconde quando estes vieram tomar posse da donataria. Consta que sua filha, Mariana Barreto, foi de fato quem liderou o ataque, algemando pessoalmente os oficiais, havendo notícias de que várias outras mulheres participaram do conflito. O levante durou dias, até ser sufocado pelas autoridades, e a vila, ocupada. Muitos dos participantes foram punidos com degredo em Angola, entre eles, Mariana Barreto.
Outra Mariana que se destacou à frente de engenhos foi a filha mais velha da baronesa de Campos, Dona Maria Eugênia Carneiro da Costa. Segundo a viajante inglesa Maria Graham, foi em sua casa, na Mata da Paciência, que, durante uma excursão a cavalo, a inglesa teve “uma das recepções das mais polidas por parte de uma bela mulher, de tom senhoril”. Vamos ouvi-la:
“D. Mariana conduziu-nos ao engenho onde nos deram bancos colocados perto da máquina de espremer, que são movidos por um motor a vapor, da força de oito cavalos, uma das primeiras, senão a primeira instalada no Brasil. Há aqui duzentos escravos e outros tantos bois em pleno emprego. A máquina a vapor, além dos rolos compressores no engenho, move diferentes serras de modo que ela tem a vantagem de ter a sua madeira aparelhada quase sem despesa. Enquanto estávamos sentados junto à máquina, D. Mariana quis que as mulheres que estavam fornecendo cana cantassem, e elas começaram primeiro com uma de suas selvagens canções africanas com palavras adotadas no momento, adequadas à ocasião. Ela lhes disse então que cantassem os hinos à Virgem. Cantaram então com tom e ritmo regular com algumas vozes doces a saudação Angélica e outras canções. Acompanhamos D. Mariana dentro de casa, onde verificamos que enquanto nos ocupávamos em observar a maquinaria, caldeiras e a destilaria, preparava-se o jantar para nós, apesar de já estar passada, há muito, a hora da família.
Sob o comando de senhoras como as Marianas e Benta Pereira, ou lavradoras de cana e roceiras, estavam as escravas. Elas também interagiam no funcionamento do engenho. O cronista Antonil foi pioneiro em observar a participação feminina em meio às perigosas engrenagens que moíam as canas. A calcanha, segundo ele, era a escrava que tinha várias funções. Vigiava o recipiente em que se coava o “mel”; varria a casa das caldeiras ou dos cobres; areava-os com limão e cinzas; acendia as famintas candeias.
Segundo Antonil, as mulheres usavam de foice e enxada na roça, como os homens. De junho a setembro labutavam dia e noite, revezando-se de quatro em quatro horas para fabricação do açúcar. Anos mais tarde, Maria Graham viu voltarem tais escravas de seus terrenos de cultivo, localizadas na fazenda, “com sua cestinha carregada de alguma coisa própria em que o senhor via que não tinha parte”. Grávidas não faziam serviço no eito e não se aplicavam, segundo Charles Ribeirolles, jornalista francês, a outro mister que o das atividades da casa. Enquanto amamentassem, eram dispensadas do serviço pesado e seus filhos confiados, logo que aprendessem a andar, a velhas negras. Escravas lavavam, passavam, cozinhavam, arrumavam, mas documentos as revelam igualmente como exímias parteiras, tintureiras, hortelãs, aprendizes de “cozer” e até como carrapateiras, entre proprietários de cavalos e mulas ou “amas de cegos e crianças”, cuidando de velhos e miúdos. Não faltavam as oleiras, conhecedoras de velhas tradições africanas, bem desenvolvidas aqui, graças ao barro que a mesma Maria Graham observara como matriz de tanta cerâmica de louça vermelha.
Já as roceiras plantavam cana com a ajuda ou não dos escravos do senhor ou da senhora de engenho. Tinham que zelar pelo canavial, l impando-o de duas a quatro vezes por ano, evitando que fosse abafado por ervas daninhas. Na época da colheita, mandavam cortar a cana por sua gente e conduziam-na em carros de boi para a moenda. Algumas moradoras destas engenhocas cobertas de palha tinham suas próprias moendas, que botavam para funcionar com bom tempo. Usavam filhos e parentes no trabalho de plantio não só da cana, mas também do feijão e do milho que cresciam entremeados ao canedo.
Longe de uma vida em cor-de-rosa, problemas não faltavam. Senhoras de engenho tiveram que enfrentar tensões entre escravos e seus desafetos ou entre escravos e elas próprias. A elas cabia proteger agricultores, agregados e feitores que trabalhassem em suas terras ou com suas canas, como se viu fazer a viúva de Manoel Ferreira dos Santos que teve o seu feitor morto com facadas pelo peito e pescoço. Elas tinham que acalmar alaridos e bebedeiras de escravos e manobrar, habilmente, contra a sua recusa de aceitá-las quando se tratava de escravo novo. Muitas senhoras anunciavam nos jornais seus escravos fugidos: “Fugiu da fazenda de D. Anna Moreira da Costa Belas, há dois meses, o seu escravo Manoel, crioulo.”
Não faltaram as que soubessem usar a violência de seus escravos em benefício de seus assuntos internos ou negócios. A esposa de Manuel Leite, por exemplo, soube armar, com seus cativos, uma emboscada para um escravo de Custódio José Nunes, um certo Manoel, a fim de evitar que este viesse ver sua escrava Maria. Outras perderam ações movidas por ex-escravos, como foi o caso de certa Maria Teresa, processada por não pagar rendimento de um canavial que mandara moer, bem como o valor dos feijões e de sua soca. O desfecho da história é que a senhora se viu obrigada a pagar com açúcar a quantia referente à moagem do canavial. Outras mais tiveram que defender seus escravos envolvidos em assassinatos. Um dos homens de certa Custódia, por exemplo, matara um feitor por este ter comido um porco de sua propriedade.
Se não faltavam tensões e conflitos que as mulheres de engenhos ou plantações tiveram que administrar, suas escravas, por sua vez, podiam ser pivôs e testemunhas de crimes e violências. Processos as mostram assassinadas, como certa Angélica que apareceu morta, com a orelha amputada e “ferimentos pelo rosto e os braços amarrados com cepos”. A razão, não se sabe. Como ela, muitas outras sofreram maus tratos ou foram estupradas e seviciadas. Outras cativas, por alguma razão, deram o troco: a fazendeira Ana Joaquina Carneiro Pimenta foi sufocada por suas escravas Letícia, Querubina, Cecília e Virgínia, e outras tantas cativas participaram ativamente de levantes, como o que ocorreu em Vassouras em 1838. Mas a zanga e braveza de muita Nhanã ou Nhãngana sobre os escravos no mais das vezes não fazia medo aos moleques e nem temor aos trabalhadores. Segundo registros literários, eram “mulheres respeitadas e mesmo amadas pela sua gente”. Por isso não faltam exemplos de senhoras que recomendavam, em testamento, a liberdade de suas mucamas queridas. Foi o caso, por exemplo, de D. Francisca Barreto de Jesus Faria, que, em 1676, estabelecia:
“Por minha morte ficará liberta a escrava Ambrosina, parda a quem deixo para a servir a escrava Gabriela. Além deste legado, terá mais a quantia de um conto de réis que lhe será entregue por meu testamenteiro”.
O mesmo fez D. Francisca com a parda Idália, a quem legou como escrava Clemência, explicando: “Ambrosina e Idália merecem de mim este favor”.
Como se não bastassem tantos problemas, as lutas por terras opunham mulheres agricultoras a seus vizinhos, e elas não mediam esforços em juntar a parentela para defender seus interesses. Para ilustrar a ferocidade destas senhoras contrafeitas, vale lembrar o caso de certa Joana da Cruz, no sertão de Calhambola, planície de Campos, que “com três filhos de nomes Leandro, Manoel e Antônio e mais três agregados de nome João dos Reis e seu irmão Fulano dos Reis e Fulano do Amaral e dois genros, Manoel da Silva e Antônio Rodrigues e mais 16 escravos machos e fêmeas […] destruíram e arrasaram todas as lavouras de plantações que nas roças de Salvador Nunes Viana e seus foreiros se achavam, pondo tudo por terra”, conta-nos um documento.
A mesma D. Mariana, tão admirada por Maria Graham, se serviu de todos os expedientes possíveis para adiar a partilha dos bens de seu finado marido entre os genros. Seu inventário revela registros bizarros sobre o assunto. Neles, os juízes de órfãos, provavelmente cooptados pela poderosa Sinhá, alegavam, sucessivamente, incômodos de fígado, ventre, hemorroidas e até uma “inflamação nos testículos” para não realizar as viagens que os obrigariam a atender as determinações do falecido.
Se umas se impunham pela força, outras eram vítimas de coações e constrangimentos. D. Ana Maria da Mota, por exemplo, pagava arrendamento de terras a Joaquim Silvério dos Reis, acoitado em Campos, depois da “Inconfidência”. Ele, por sua vez, impunha a seus foreiros a compra de seus escravos por “exorbitante preço”. A vingativa Donana não hesitou em assinar libelo acusatório contra o inconfidente e seu sogro, Luís Alves de Freitas Belo, comparsa de espoliações. Não foi a única a reagir. Uma representação ao rei menciona certa D. Ana Francisca Pinheiro, possuidora de “um engenho de fazer açúcar em terras do dito visconde (de Asseca) e dos frades beneditinos”, igualmete alvo das manipulações de Silvério e do sinistro coronel Belo. Ambos pretendiam “o arrendamento das ditas terras e lançar fora do seu engenho a viúva, reduzindo-a ao estado mais miserável”. Outras proprietárias de pequenos engenhos, Rosa Maria de Jesus e D. Maria de Jesus da Encarnação, também sofreram ameaças – se “não dessem meação e lenhas”. Todas se vingaram indo à Justiça contra a dupla.
- texto de Mary del Priore.
Engenho, de Frans Post (1688).