Mesa da Irmandade do Rosário, de Debret.
Em 25 de outubro de 1836, em Salvador, Bahia, ocorreu uma das revoltas mais curiosas da nossa História, que ficou conhecida como a Cemiterada. O alvo da ira popular era o recém-inaugurado cemitério Campo Santo, construído por uma empresa privada que havia conseguido o monopólio dos enterros da cidade por um prazo de 30 anos. A nova lei proibia os funerais nas igrejas, tradicional costume da época que tinha implicações religiosas e culturais. Acreditava-se que as cerimônias fúnebres tinham grande importância na salvação das almas. Tais crenças eram combatidas pelos médicos e higienistas, por razões de saúde pública.
O levante começou -, nos conta João José Reis, em “A morte é uma festa”-, como um protesto convocado pelas irmandades e ordens terceiras de Salvador, organizações que cuidavam, entre outras funções, dos funerais de seus membros. Centenas de pessoas marcharam pelas ruas da cidade, como uma procissão: com hábitos, capas, cruzes e as bandeiras de suas confrarias. O caráter religioso dos participantes inibiu uma repressão mais efetiva dos poder público. A população, em geral, ficou ao lado das irmandades e contra os cemiteristas. O cemitério era visto como uma ameaça à fé católica.
Houve discursos e um abaixo-assinado contra a companhia que havia ganhado o monopólio dos funerais e construído o Corpo Santo. A multidão invadiu o palácio, fazendo com que o presidente da Província suspendesse a proibição dos enterros nas igrejas até a realização de uma sessão extraordinária na Assembleia Provincial. Mas, isso não foi suficiente. A população enfurecida se dirigiu ao cemitério, munida de machados, barras de ferro e outros instrumentos usados nas obras do local.
Aos gritos de “Morra, cemitério!!”, o local foi destruído em algumas horas. As instalações foram quebradas e incendiadas: portões, muros, grades, mármores para as lápides, coches, panos funerários, e até mesmo a capela – nada escapou da fúria dos revoltosos. Terminada a destruição, passou-se para o saque: as pessoas retornavam à cidade, levando nas mãos os restos dos materiais fúnebres. A polícia se manteve afastada. Muitos autores destacam os aspectos econômicos da revolta, pois, a nova lei retiraria parte da renda das irmandades e de outras instituições ligadas ao mercado “da morte”, esse dinheiro passaria às mãos da empresa privada responsável pelos enterros.
João José Reis destaca que esse tipo de abordagem não é suficiente para explicar a complexidade da revolta. A quebra repentina de uma tradição foi vista como uma afronta às crenças populares:
“Os funerais de outrora, e em particular, os enterros nas igrejas, revelam enorme preocupação de nossos antepassados com seus próprios cadáveres e os cadáveres de seus mortos. Por razões diferentes, os médicos da época da Cemiterada se preocupavam com o mesmo objeto. Eles viam os enterros dentro dos templos e mesmo dentro da cidade, além de outros costumes funerários, como altamente prejudiciais à saúde dos vivos. Mortos e vivos deveriam ficar separados. A novidade vinha da Europa, e foi divulgada no Brasil independente por meio de uma campanha que fazia da opinião dos higienistas o testemunho da civilização”.
Não houve punição aos envolvidos na revolta. Nenhuma testemunha quis cooperar. O empresários receberam uma indenização, e o cemitério começaria a ser reconstruído em 1841. No início, eram enterrados lá apenas indigentes, escravos e vítimas da febre amarela. Em 1855, com a epidemia de cólera, o Campo Santo começou a ser utilizado mais intensamente. “Diante da peste, que foi interpretada como castigo divino por muitos, os baianos se conformariam com a ideia de expulsar seus mortos da cidade, abandonando valores antes considerados sagrados“, conclui Reis.
– Texto de Márcia Pinna Raspanti.
Baseado em “A morte é uma festa”, de João José Reis (Companhia das Letras, 1991).
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