É bem distante dos debates entre Igreja e medicina que o historiador encontra restos da preocupação que se tinha com a esterilidade e na ênfase dada pelas comunidades do passado à questão da procriação. Outrora, espaço onde se misturavam crenças em malefícios, influências cosmológicas e magia, as práticas contra a esterilidade revelavam a resistência das populações ao fim de práticas tradicionais que traduziam o controle de homens e mulheres sobre o seu próprio capital seminal. A solidez de crenças e de uma mentalidade enraizada havia séculos, ainda que mediada pelos “doutores”, esclarece que a eficácia de rituais de combate à esterilidade tinha sua fonte num saber analógico.
Estéreis e frios podiam sofrer de impotência perpétua ou temporária. Mais, essa “frialdade” podia ser respectiva, tendo como alvo o cônjuge; ou absoluta, quer dizer, de uma mulher ou homem em relação aos demais membros do outro gênero. A crença generalizada que explicava a impotência de tipo “respectivo ou absoluto” era, aliás, a maldade do demônio. Demônio capaz de ligar, por arte satânica, as partes sexuais, incapacitando-as para os seus movimentos naturais. Ora, o grande número de mezinhas receitadas aos “ligados” ou impotentes “por malefício”, encontrado em manuscritos na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, sublinhava a concepção mágica que se tinha nesse período sobre a procriação. Pouco importava as explicações médicas, mais valendo a simbologia analógica de certos medicamentos de uso tradicional.
O comer “pegas assadas e cozidas”, ave corvídea também conhecida por pica-pica, e a erva “hipericão” aplicada aos rins, ajudava. “Ir urinar num cemitério pela argola da campa de uma sepultura, urinar pelo anel da esposa antes, e depois do ajuntamento, ou pelo nó de uma ripa, ou tábua cortada”. “Da água que cair da boca de qualquer cavalo que beber em corrente apanhada, logo escrevem alguns há grande virtude. Tomar erva de carrapatos ou figueira – do – inferno e metida em uma panela nova se lhe lance em cima urina do doente e depois de cozida se enterre em parte, ou lugar fora do caminho, porque o feitor do malefício sentirá grandes dores, e estimulado disto desfará o malefício”.
Tanto em Portugal quanto na Colônia vivia-se na crença de poderes demoníacos sobre o corpo e a sexualidade, rastreados, aliás, por todos os manuais inquisitoriais de demonologia, os quais exigiam medidas combativas contra a esterilidade. Eis por que as Constituições do Arcebispado da Bahia mencionam a impotência “por arte”, referindo-se às artes de Satã. Além de buscar a neutralização do mal, tais receitas, quando não eram eficientes, serviam como desculpa para esposos interessados em reverter o quadro de indissolubilidade matrimonial alegar o não-cumprimento do débito conjugal. Para os menos impressionáveis recomendava-se que:
“Os ligados, abstendo-se do congresso alguns dias, recorressem a Deus Nosso Senhor com deprecações para que por seu Filho Unigênito, Nosso Senhor Jesus Cristo, fosse servido destruir as obras do Demônio; que se inquirissem e revolvessem os cantos, cama, casa e couceiros das portas, e achando-se alguns instrumentos, se queimassem e mudassem ao menos o leito e a cama e que se purgassem com os remédios adequados ao humor em que residia o venéfico bebendo-se em cima um pouco de vinho generoso, e passada hora coabitassem, com os quais remédios se reduziriam ao estado antigo e cessará o venéfico.”
Se as receitas médicas não funcionavam, não faltavam mandigueiros, calunduzeiros e outras “castas” de feiticeiros que propunham soluções distantes daquelas da Igreja ou dos médicos. Os saberes africanos, organicamente incorporados ao cotidiano em função de sua presença entre nós, ofereciam, eles também, recursos considerados eficientes. Processos de africanos e seus descendentes denunciados à Inquisição do Santo Ofício demonstram que seu sistema religioso estava conectado ao cristianismo e que para interferir nos “ligados” não faltavam preparos como os feitos por certa escrava Domingas Fernandes, em 1612. Ela aprontava ungüentos a base de urina, mel e três escarros da pessoa ligada, dizendo em oração: “tu que estás ligado, eu te desato com Deus Pai e a Virgem Maria sua madre, e como o santíssimo sacramento que é a verdadeira vontade.”
Para aqueles que quisessem tão-somente conjurar os riscos do malefício, vivendo em “amor pacífico”, recomendava-se ao marido “trazer consigo o coração da gralha macho, e à mulher o da gralha fêmea”. E, finalmente, para aqueles que quisessem testar suas sinceras afinidades, uma fórmula que conciliava aos que “se tratam com amizade recíproca, e aos que se aborrecem, aumenta a inimizade”: “os pós de andorinhas vivas em uma panela a torrar no forno, dadas a beber em vinho”.
Encorajadas ou condenadas pela medicina, essas práticas tinham em comum o fato de realçar as partes do corpo, cujas conotações sexuais eram valorizadas por registros simbólicos. O mesmo médico luso, Bernardo Pereira, sugeria aos ligados: “Lavar as partes pudendas com cozimento da semente, flor e erva chamada vulgarmente pombinha, defumando depois com dente de defunto lançado em tijolo feito brasa, amaciando-o quando em quando em aguardente, e depois de limpo o suor untar com assa-fétida, embrulhando as partes (sexuais) em panos quentes defumados no mesmo”. Aconselhava também defumadouros à base de “pós de rasuras dos sinos raspados onde dá o badalo”, tomados com “pós de genital de touro”.
As unções com “fel” (fezes) de corvo ou de cão, os untos de “pardal e enxúndia de cegonha” e os banhos íntimos com açafrão, noz-moscada, carne de vitela, leite e vinho eram de uso recorrente. Inspirado em Garcia de Orta, que destacara os resultados da assa-fétida “para levantar o membro”, (para alguns autores, asa de morcego, para outros, uma planta da família das umbelíferas), Curvo Semedo, em 1707, recomendava um óleo em que “tivessem infundido cinqüenta formigas que têm asas”.
Oliva Sabugo pedia atenção para “manjares que comem marido e mulher porque a fôrma sempre retém alguma coisa da matéria”. Desaconselhados eram os “maus mantimentos, nem coisas fleumáticas, nem melancólicas, ao tempo que há aptidão na mulher para emprenhar, para que a semente seja de boa matéria”. Entre os “casados frios e velhos”, havia esperança para os que untassem “levemente o membro, e principalmente a fava, com uma migalha de algália porque acodem tantos espíritos a ela e a engrossam de sorte que alguma vez não pode sair do vaso (feminino)” .
O contato com os índios na América portuguesa levou ao emprego da pirótica, ou seja, o uso do fogo, nos procedimentos de cura. Homens, cuja impotência causava-lhes dissabores e vergonha, untavam o escroto e a região púbica com sebo de bode, “sentando-se sobre brasas vivas”, isto é, aproximando-se, o mais possível, de um “caco” (vasilha de barro em forma de alguidar) cheio de brasas. Provavelmente de tal prática, informa-nos o mesmo autor, nasceu a expressão “estar sentado em brasas”. Garrafadas à base de catuaba, largamente utilizadas até os dias de hoje, também decorrem dos empréstimos aos conhecimentos fitoterápicos dos tupis-guaranis.- Mary del Priore.
“Afresco do Inferno”, de Giovanni da Modena (1410).