Falsas promessas: seduzidas e abandonadas

Antes do casamento, havia a frequentação do noivo à casa da noiva, o que era motivo do temor da Igreja. Esta receava que os prometidos tivessem relações sexuais, o que apesar dos traços acentuadamente patriarcais vigentes no mundo luso-brasileiro, costumava acontecer em todos os grupos sociais. Era só os pais saírem de casa, e as redes e esteiras serviam para os embates amorosos. Isso quando não se usavam “os matos”, as praias, os quintais, todo o canto, enfim, que desse um pouco de privacidade.

Os tais “abraços desonestos” costumavam ter sérias consequências nos meses seguintes. Quem nos conta isto, são os processos de rompimentos de esponsais, sedução e defloramento. Eles nos revelam os detalhes da intimidade dos casais de enamorados ou noivos como, também, o percurso destes amores efêmeros. O gosto acre do desespero, o corpo desolado e a alma rasgada em pedaços deixam marcas nos documentos históricos. As reclamações das que tinham sido seduzidas e abandonadas revelam de que forma a exploração sexual se fazia, aparentemente, sem maiores consequências para os homens. As mulheres engravidadas invocavam, na medida de suas conveniências, valores como “virgindade roubada” ou “quebra de promessa de esponsais” para passar de um degrau ao outro: da sedução ao casamento. A Igreja então recompensava as “arrependidas” com processos eficientes e rápidos que garantiam seus objetivos institucionais: difundir o casamento.

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Paraty, início do século XIX,“a ofendida Felicidade Maria” dá queixa na Justiça contra Joaquim Pacheco Malvão:

“Respondeu que o motivo da queixa foi em razão de ter o dito Joaquim Pacheco Malvão emprenhado a ela interrogada. Perguntado se era verdade, que o dito Joaquim Pacheco Malvão fora quem lhe fizera esse mal? Respondeu ser verdade que Joaquim Pacheco fora a única pessoa que isso lhe fizera. Perguntado se para isso fora forçada. Respondeu que não, apenas lhe prometera brincos, e cortes de vestidos. Perguntado mais se tem mais alguma queixa contra o dito Joaquim Pacheco. Respondeu que só tem queixa de ter o dito Joaquim Pacheco deflorado e emprenhado a ela interrogada, sendo ele único homem que a conheceu …”.

E conta uma testemunha: “que tem plena convicção ser o Réu quem ofendera a Autora, sendo certo que nunca presenciou a Autora conversar  com outro homem que não fosse o Réu (…) que na tarde em que encontrou a Autora e o Réu juntos ao pé do rio, ele testemunha vira em ocasião que a Autora estava tirando laranjas quando passara o Réu, e fazendo um aceno para a Autora esta o acompanhou para o rio onde fora buscar água (…) em uma ocasião haverá dois meses mais ou menos, indo ele testemunha na sua roça em a praia da Jabaquara cortando um pau vira passar a ofendida e logo o Réu, e dirigirem se para o mato e que ele testemunha presenciara e vira a ofendida e o Réu estarem no mato juntos e unidos um por cima do outro a fazerem movimento com o corpo, e que ele testemunha vendo este ato, voltou sem dar a perceber a ninguém. Disse mais que julga ter o Réu ofendido, e emprenhado a Autora (…) e que nunca viu a ofendida brincar ou conversar com outro homem que não fosse o Réu (…) que sendo a ofendida pessoa pobre, vai ao rio buscar água (…) Disse que em razão  de ser vizinho do queixoso sabe por ver, que o Réu fazia acenos com os olhos para a ofendida e esta lhe correspondia. Disse mais que por duas vezes indo ela testemunha a sua roça que fica perto de sua casa ai vira debaixo de um arvoredo … o Réu com a ofendida, unidos deitados, um por cima do outro, e fazendo movimento com o corpo. Disse mais que a ofendida dissera a ela testemunha que o Réu lhe havia prometido casamento, um corte de vestido e um par de brincos, e que se alguma coisa acontecesse o Réu lhe havia de amparar …”.

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Singela, quase simplória esta cartografia de nossa sedução: uma promessa, um lugar tranquilo, mas, sem privacidade, a condição de pobreza dos amantes. Condição, diga-se, da majoritária população da Colônia, e na qual se fabricavam muitas famílias chefiadas por mulheres.

Longe de passar uma impressão de promiscuidade das classes subalternas, a confissão das “ofendidas” realça, bem ao contrário, que os amantes se submetiam a um verdadeiro código de sedução. Nada se fazia sem galanteios, presentes, visitas. Mais do que discutir o defloramento ou a gravidez, ao juiz elas recordam as cartas de amor, a frase apaixonada, a troca de presentes e mimos, as eternas promessas de casamento, enfim, contas de um rosário cuja cruz é um filho que não se quis. Ah, os infortúnios da virtude! Ser seduzida “com promessas de amor” e depois “levada de sua virgindade” era comum. Carinhos, afagos, “sinais amatórios” são alguns dos muitos signos do ritual de sedução encontrados nos relatos processuais. “Eu hei de casar com você” era capaz de prometer um pretendente, aparentemente, apaixonado para conseguir o seu intento. – Texto de Mary del Priore.

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“Vênus adormecida”, de Giorgione (1508).

Referência bibliográfica:

“História do Amor no Brasil”, de Mary del Priore (Editora Contexto, 2005).

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