Duas imagens de garotas: na primeira, a pequerrucha — deve ter 4 ou 5 anos — empurra valentemente o carrinho de brinquedo pela rua esburacada do bairro. Entre panos, um bebê de plástico adormeceu com os solavancos. Ela para, de vez em quando, para examinar seu sono de boneca. A mãe, ao lado, empurra o outro carrinho, esse de verdade, no qual irá levar a filhinha para casa depois da manhã de brincadeiras na praça.
Outra cena: um pequeno colégio de bairro. Hora do recreio. Nada mais bonito do que as vozinhas estridentes, o riso, a alegria das crianças. Correm, jogam bola, divertem-se no gira-gira, pulam corda. Mas tudo isso é “quebrado” por uma música que, de imediato, não reconheço. Não é ciranda-cirandinha! Outras meninas – entre 7 e 8 anos — se põem a dançar. Os corpinhos infantis e as perninhas magras vibram em contorcionismos. As cabecinhas viravolteiam, jogando os cabelos num pêndulo frenético. Os diminutos quadris sobem e descem buscando a “boquinha da garrafa”. A professora, entre conformada e cética, sorri. O recreio prossegue “tranquilo”.
As imagens fazem o historiador pensar: que cultura é a nossa, na qual convivem modelos tão opostos para as meninas? Num primeiro, ela inscreve-se numa tradição onde a maternidade e tudo o que a cerca são valorizados: a família, a casa, os costumes tradicionais. No outro, o que preocupa todas nós, mães: a sexualidade precoce, as gestações de adolescentes, a supervalorização do corpo, o hedonismo crescente gerando “paquitas”, “funkeiras” e outras aberrações. Quantas garotinhas não são fotografadas, fantasiadas de dançarinas sensuais: a boquinha borrada de batom e as mãos de restos de esmalte: pequenas e tristes caricaturas do pior que pode produzir o mundo dos adultos…
A história do Brasil mostra que o segundo modelo, que aproxima brutalmente a menina de sua sexualidade, não é novidade. Mestre Gilberto Freyre, remexendo velhos documentos do século XVIII, comprovou que era costume jovens senhores de engenho estuprarem meninas escravas com a finalidade de transmitir-lhes sífilis e curarem-se. Os Inquisidores do Santo Ofício passavam batido por casos em que homens maduros sodomizavam meninotas de 7 anos. Perseguiam-se os adultos “per desperdício de semem” — pecado gravíssimo, associado ao nanismo — e não por pedofilia.
Em 1735, um ouvidor português em viagem pelos sertões mineiros esbarrou em uma jovem mãe de 10 anos. Leocádia era seu nome, tinha três filhos e vivia amancebada desde os oito. Mereceu de sua pluma graves considerações. Viajantes estrangeiros que cruzaram o Brasil, durante o século XIX, não deixaram de perceber, escandalizados, a forma pela qual a criança entrava precocemente no mundo dos adultos. Vestiam-se como eles, fumavam, davam ordens aos gritos, distribuíam chutes e pontapés reproduzindo a violência da sociedade escravista.
O Brasil de hoje não é o mesmo do passado. Mas, sob novas formas, o historiador percebe velhas permanências. A menina que, no passado, servia de vacina para a sífilis do sinhozinho está, hoje, nas páginas da internet, nos sites de pornografia infantil. A reação hoje, diferentemente daquela do Inquisidor do século XVIII, não é o silêncio. Mas o grito de horror.
Qualquer mãe, qualquer cidadão em sã consciência sente-se repugnado, revoltado, de estômago virado diante das imagens veiculadas em jornais e televisões sobre o assunto. Não se pode imaginar as doces criaturas que brincam no recreio em poses lascivas, estendendo os bracinhos magros, abrindo as perninhas para o monstruoso internauta! Ou pode-se?
A mediação não estaria, justamente, na “dança da boquinha da garrafa” no recreio ou em programas de televisão infectos, que injetam nos mais desprotegidos dos seres – nossas crianças — imagens repulsivas que elas acabam imitando para riso e deleite, primeiro do papai e da mamãe e, depois, para o de pedófilos? O que eles sentem, vendo ao vivo e em cores, as pequerruchas no recreio?
Não há explicação científica, nem “freudiana” que dê conta, para pais e mães saudáveis, da doença da pedofilia. Mas os sintomas que podem alimentá-la estão aí para quem quiser ver. A luta contra a pornografia infantil deve ser implacável. Incansável. Mas é preciso estarmos atentos contra práticas vividas socialmente, que só corroboram no silêncio sobre a iniciação precoce de nossas filhas. A responsabilidade dessa luta não pode ser apenas do Estado, mas de cada um. Não estará na hora de repensarmos a péssima influência de certos programas de televisão, atores e atrizes, revistas, discos e quejandos na fabricação de milhares de crianças que, cada vez mais, os imitam aceitando se deixar explorar sexualmente, na maioria das vezes com a conivência dos pais, pois acostumaram-se todos a tomar a representação do que viram na televisão pelo concreto de suas vidas, o imaginário da “paquita” pelo real da menina que rebola na escola?
Ou continuaremos como o Inquisidor seiscentista em silêncio, deixando “passar batido”, preocupados que estaremos com outros pecados sociais? – Mary del Priore
“As meninas”, de Diego Velásquez: inocência infantil.
achei altamente interessante esses relatos, contando as historias de um passado sob a visão de vários psicanalistas e vendo que os problemas continuam emoldurando com um legado de perplexidades ainda hoje existentes.quem sabe vendo assistindo a filmes documentarios, livros e informatica em geral chegaremos a um consenso comum, será, o ser é tão complexo, mas quando chegamos as raias da volência é de se tomar providencias em todas as esferas e segmentos da sociedade.
De fato, não basta o Estado combater a pedofilia. Precisamos, todos, educar nossas crianças para serem crianças, depois adolescentes e, finalmente adultos. Infelizmente, há inversão da ordem e dos valores. E a mídia – Ah! A mídia…! – só apodrece as mentes com seu lixo comercial.
Parabéns, Mary, pelo excelente artigo.