O corpo feminino passou por uma revolução silenciosa nas últimas três décadas. A pílula anticoncepcional permitiu-lhe fazer do sexo, não mais uma questão moral, mas de bem-estar e prazer. A mulher tornou-se, assim, mais exigente em relação ao seu parceiro, vivendo uma sexualidade mais ativa e prolongada. Entre ambos, surgiram normas e práticas mais igualitárias. A corrente de igualdade não varreu, contudo, a dissimetria profunda entre homens e mulheres na atividade sexual. Quando da realização do ato físico, desejo e excitação física continuam percebidas como domínio e espaço de responsabilidade masculina. O casal raramente reconhece a existência e a autonomia do desejo feminino, obrigando-o a esconder-se atrás da capa da afetividade. A famosa “pílula azul”, o Viagra, só veio a reforçar o primado do desejo masculino, explicitando uma visão física e mecanicista do ato sexual, reduzido ao bom funcionamento de um único órgão. Revanche masculina contra o “domínio de si” que a pílula anticoncepcional deu à mulher? Talvez…
O espaço privado no qual tais mudanças se impuseram também mudou. A brasileira saiu do campo e veio para a cidade. Teve que mudar o corpo e alma. Em meio à solidão da grande cidade, ao trânsito, à corrida contra o relógio, aprendeu a sonhar com a emoção do sentimento sincero, com o fantasma da interação transparente e fusional. Leu preferencialmente romances e livros de auto-ajuda, sempre à espera de um príncipe encantado que a levasse de volta, ao século passado. Mas aprendeu também que, neste mundo de competição e trabalho, os sentimentos intensos demais provocam horrível embaraço e que as lágrimas e a dor, devem submeter-se a implacável discrição afetiva; a um tal de “self control”. Sob o choque da modernidade capitalista, ela viu igualmente a família se modificar. A crescente dissolução de casamentos que duram cada vez menos, o aumento de divórcios que não impedem ninguém de recomeçar novamente, constituíram-se em novo cenário para as relações afetivas. É o fim de um mundo constituído por vastas parentelas, famílias enormes, sobrinhos e afilhados reunidos nos domingos para o almoço, onde residem tensões mas também, e sobretudo, solidariedades. Ocupando cada vez mais os postos de trabalho, a mulher vê-se na obrigação de buscar um equilíbrio entre o público e o privado.
Tarefa fácil? Não. O modelo que lhe foi oferecido como exemplo, até bem pouco tempo atrás, era o masculino. O modelo feminino da super mulher dos anos 80, calcado sobre um modelo de forte investimento profissional e de competição era o de “um homem como nós”, como diriam alguns patrões. Mas a executiva de saias não deu certo. Isso porque são inúmeras as dificuldades e os sacrifícios da mulher quando ela quer conciliar seus papéis familiares e profissionais. Ela é obrigada a utilizar estratégias complicadas para dar conta do que os sociólogos chamam de “dobradinha infernal”. A carga mental em que se constituem as imbricações e sucessões de atividades profissionais, o trabalho doméstico, a educação dos filhos é mais pesada para ela do que para o homem. Quando quer investir-se profissionalmente, ela acaba por hipotecar sua vida familiar ou usar todo o tipo de astuciosa bricolagem, sacrificando o tempo livre que teriam para seu prazer e seu lazer e que poderia estar sendo vivido na esfera doméstica. Muitas mulheres, menos afortunadas, são, assim empurradas para uma pesadíssima jornada de trabalho.
O diagnóstico das revoluções femininas até o século XX é, por assim dizer, ambíguo. Ele aponta para conquistas, mas, também, para armadilhas. No campo da aparência, da sexualidade, do trabalho e da família houve conquistas, mas também frustrações. A tirania da perfeição física empurrou a mulher, não para a busca de uma identidade, mas de uma identificação. A revolução sexual eclipsou-se frente aos riscos da AIDS. A profissionalização, se trouxe independência, trouxe também stress, fadiga e exaustão. A desestruturação familiar onerou sobretudo os dependentes mais indefesos: os filhos. Nossa sociedade – não é a única, é bom que se diga – mira, cada vez mais nos valores de juventude e progresso. Ao mesmo tempo que se reconhece a importância da saúde como fonte de prazer, e a medicina tem feito inúmeros avanços para nos prover com bem-estar, todos os esforços são investidos para dissolver a velhice. Para reduzi-la. O aumento da esperança de vida, tornou-se um problema, pois as mulheres não querem mais “envelhecer”.
Em nossos dias, a identidade do corpo feminino corresponde ao equilíbrio entre a tríade beleza-saúde-juventude. As mulheres, mais e mais, são empurradas a identificar a beleza de seus corpos com juventude, a juventude com saúde. O interessante, diz o antropólogo Bruno Remaury, é que essas são basicamente as três condições culturais da fecundidade, portanto, da perpetuação da linhagem. Em todas as culturas a mulher é objeto de desejo. Em pouquíssimas, esse desejo estaria dissociado de sua aptidão para a maternidade. Daí a valorização dos quadris femininos, berço e sementeira da raça humana. Ora, assim sendo, não deixa de ser curioso constatar que numa sociedade onde as mulheres, graças aos contraceptivos, já tem o controle de sua sexualidade, o modelo resultante de tantas mudanças não trouxe maiores novidades. E pior: a redução brutal dos quadris associada ao consumo de pílulas anticoncepcionais não mudou, sob certos aspectos, sua situação. Mesmo tomando posse do controle de seu corpo, mesmo regulando o momento de conceber, a mulher não está fazendo mais do que repetir grandes modelos tradicionais. Ela continua submissa. Submissa não mais às múltiplas gestações, mas à tríade de “perfeição física”.
– Mary del Priore.
Belíssimo texto!
Mary, amei o Texto, obviamente tudo que vc escreve é muito BOM, vc consegue fazer um paralelo das principais situações vividas pelas mulheres,em um texto gostoso de ler! bjs