Após a morte de Leopoldina, D. Pedro precisava se casar novamente. Os desacertos na corte refletiam-se no exterior e a boa estrela também se apagava. O marquês de Barbacena, que viajara para a Europa com um pacote de brilhantes e duas caixas de borboletas para Metternich, assim que este lhe entregasse a segunda esposa de D. Pedro, frustrou-se. Lá, já circulava que tinham chovido nomeações para os familiares da Marquesa de Santos (Domitila ou Titília) e, pior, que bispos e arcebispos do Brasil tinham ceado em sua casa, num convívio inaceitável. Não à toa, estrangeiros registravam: “Em parte alguma do mundo existem mais padres e vê-se menos religião do que no Brasil.” Tais fofocas seriam “manejo de pessoas interessadas em fazer malograr o casamento”?,perguntava-se Barbacena, de mãos vazias e já de volta.
Convencido pelas informações, D. Pedro entendeu que só receberia o “sim” de alguma princesa se Titília evaporasse. O ministro voltaria para buscar uma princesa da casa de Saboia assim que Domitila partisse para São Paulo e, de lá, fosse para a Europa. D. Pedro tinha pressa. Escreveu-lhe dizendo que não desejava que uma nova aliança se frustrasse por causa dela. Mais: com o gênio irascível que possuía, se ela estivesse em sua “delicada posição”, decerto faria exigência pior. A volta de Barbacena da Europa com a lista de negativas pedia medidas urgentes. O jeito foi arranjar uma desculpa, uma saída honrosa. Um convite para Domitila deixar o Rio, com a desculpa de uma licença de saúde, parecia ser a solução. Mais do que nunca o sangue falava
mais alto do que a carne:
“Marquesa. Não foram faltos de fundamentos os conselhos que lhe mandei em
minhas anteriores cartas para que me pedisse licença debaixo de pretexto de saúde
para ir estar em outra província do império, a fim de eu poder completar meu
casamento, ao qual se opõe sua presença na corte […] O caso é muito sério. Esta
minha comunicação deve pela marquesa ser tomada como um aviso que lhe convém
aproveitar […] fique certa que esta é minha derradeira resolução.”
Colocou à disposição para levá-la a São Paulo os cavalos que lhe tinha dado e se encontravam nas cocheiras de São Cristóvão. Organizou para que partisse de madrugada, com comitiva. As tralhas iriam por mar até Santos. Tinha, então, início um cabo de guerra.Ela, cautelosa: que viessem os cavalos para, “enquanto eu não for, serem tratados”. Destino? Não tinha ainda. “Por quanto tempo quererá que eu esteja separada de minha casa?”, perguntava. E desmentia os que a desacreditavam: “Enquanto o falarem e dizerem que eu não vou, seria melhor dizerem-lhe outras coisas…”
Ele, paternal:
“Nunca esperei menos de seu são juízo.” Agradecia-lhe pelo “grande sacrifício” que fazia por ele, mas o tempo mostraria seu prêmio. Importante era mostrar que era sua a iniciativa. Não dele. “Pode estar certa de que nunca me esquecerei da Marquesa nem de sua família”, tranquilizava-a.
Ela, ressentida: “Eu lá irei, não se mortifique com a minha jornada. Eu tenho paciência para lá aturar tudo.”
Ele, apressado: “Espero que se aproveite do que lhe mereço e não faça o que marotos dizem que ‘a Marquesa não sai’.”
Ela, levantando a voz: “Sei cumprir o que prometo. Hei de sair até o fim do mês e peço-lhe não me incomode mais.”
Ele, paciente: “Não repare que a bem de meu casamento, lhe torne a escrever.”
Pedia-lhe que deixasse a corte antes de sua filha, Maria da Glória, voltar à Europa, por uma razão: “convém que os que vão possam dizer ‘a Marquesa já saiu’ e não, ‘está para sair’.” Sair junto ou depois, lhe faria “um mal incalculável”. E admoestava: “Não ouça conselheiros que querem a sua perdição na opinião pública. Faça o que lhe digo, pois lhe falo sério.”
Ela, irritada:
“Senhor. Perdoe-me que lhe diga isto: eu não preciso de conselhos. Não sou como
Vossa Majestade, as minhas respostas são todas nascidas do meu coração […] eu
sempre disse que sairia no princípio de julho e se [ela] disse o contrário mentiu. Eu
torno de novo a fazer esta vontade. Sairei até o fim do mês que vem e Deus permita
sejam todas as suas vontades feitas assim como eu as faço. Eu tive criação, sei
conservar minha palavra e sou de Vossa Majestade, criada e obrigada.”
Ou, sem se curvar:
“Senhor.
Estimo a saúde de Vossa Majestade […] Vossa Majestade sabe muito bem que, se
eu vou fazer este passeio, é só para lhe fazer a vontade. Não que eu tenha a intenção
de sair daqui para parte alguma. Assim, Senhor, não posso ir para o mês que vem,
senão nos princípios de julho. Não sou destas de coçar as costas. Já lhe faço esta
vontade e assim peço-lhe não me mortifique mais.”
A tensão caminhava para um clímax. Em seus ofícios à França, Gabriac descia aos menores detalhes do desenlace. Um dos ásperos diálogos dos amantes foi por ele reproduzido:
“– Arranco-te a pensão, se quiseres ficar aqui.
– Não quero outra coisa: irei pedir esmola. E todo o Brasil saberá quanto és avaro e vil.
– Pois bem, se me obrigas a isso, hei de expulsar-te à força, pedirei às Câmaras nominativamente uma lei de exceção às garantias dadas pela Constituição.
– Faze-o que todo o Brasil se há de rir e me divertirá infinitamente.”
Enfim, clímax e combustão. Ela reclamava que queria ver mais as filhas. Continuava pedindo cargos para os “afilhados”. Arrufos: ela enviou-lhe cravos que valeram uma resposta dura: “de que me servirão lembranças destas.” O importante era que ela não se opusesse ao casamento dele, “infelicitando-me, a meus filhos e a todo o império”. A favorita, finalmente, largou a corda:
“Filho. […] minha presença não lhe há de ser mais fastidiosa nem V. M. casando nem
deixando de casar, e só desta maneira terão sossego os meus inimigos. Fique V. M. na
certeza de que serei eternamente grata a tantos benefícios que lhe devo, sou de V. M.
a amiga e criada.”
Mareschal, que assistia a tudo, não deixou passar e escreveu a Viena: “O imperador está tão decidido a se casar que, no caso de uma recusa geral, ele pretende ir pessoalmente à Europa buscar uma esposa.” Exausta, Domitila ainda escrevinhou duas linhas para o amante:
“Senhor. No mundo todos têm um amparo. Dinheiro de nada serve. Que o imperador se condoa pelo amor de Deus de uma desgraçada.”
O grito de dor não foi ouvido. Cumpriam-se as derradeiras medidas da separação. Ele a repudiava abertamente. Não haveria nenhum casamento morganático. Ela jamais daria a mão esquerda para ele, como acontecia nessas ocasiões em que um homem de sangue azul unia-se a uma plebeia.
- Texto de Mary del Priore. “A Carne e o Sangue”, Editora Rocco, 2012.
D. Pedro e Domitila: rompimento difícil.
MUITO GRATO. Amei ter lido esta síntese. Um romance literário que a vida “real” e seu cotidiano escrevem. Emocionante.
D Pedro era muito leviano, a imperatriz morreu de tristeza, com depressão, por conviver com aquela situação.. Ela morreu querida pelo povo e ele não
Olá. Que delícia de leitura. Simplesmente amei. Já vi outras obras de época. Muito bem elaborada em alguns momentos. E ficção em outro. Mas aqui nessa breve leitura. Tivemos acesso a textos de cartas ao qual nunca tive acesso. Foi ótimo. Um abraço.
Gostei do seu site. Você está dando alguma assessoria aos autores da novela Novo Mundo? Podemos confiar que os fatos narrados das personagens estão corretos? Grato
Bom dia, Marcos. Não estamos prestando assessoria para os autores. Lembremos que a novela é uma obra de ficção, portanto, tomam-se muitas liberdades com a História. Se quiser conhecer mais sobre o tema, há muitas obras sérias e bem fundamentadas, como “A Carne e o Sangue”, de Mary del Priore, e as biografias de D. Pedro I, Leopoldina, de Paulo Rezzutti, entre outras.
Como amo saber dessa história… obrigada pela ajuda, dedicação e fidelidade aos fatos.