Eleições: guerrilheiros e guerrilheiras

Um tema que voltou a ser discutido nas eleições de 2014 é o da luta armada, nos tempos da ditadura militar (1964-1985). Apesar de ser uma realidade distante, não é de se estranhar que o passado seja lembrado: de um lado, a presidente Dilma Rousseff (PT), que participou de grupos guerrilheiros (COLINA e VAR-Palmares); no campo oposto, o candidato a vice na chapa do PSDB, Aloysio Nunes Ferreira, que militou na ALN. Eles e muitos outros jovens decidiam pegar em armas para enfrentar a repressão que dominava o Brasil. A luta armada é um dos assuntos mais controversos da história recente do país e ainda rende acalorados debates. 

A direção central do PCB, logo após o Golpe Militar de 1964, dá início à autocrítica diante do esquerdismo e condena a resistência armada. Todavia, tal postura não foi unânime, fazendo com que dirigentes abandonassem o partido, como nos casos de Carlos Marighella (indo para a Aliança Nacional Libertadora – ANL) e Apolônio
de Carvalho (indo para o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário –
PCBR). Critica-se, então, o que se denominava etapismo, uma estratégia
que prega a revolução por etapas, cabendo ao PCB apoiar a burguesia
no processo de constituição de uma sociedade liberal, antifeudal e antiimperialista,
deixando para um futuro distante a luta pela implantação do  socialismo. Para os dissidentes, a estratégia do PCB facilitava a implantação da ditadura, pois subordinava o movimento operário aos acordos de cúpula com as lideranças populistas. Avalia-se que a burguesia depende de sua associação com a agricultura de exportação e com o capitalismo internacional, não havendo por parte do empresariado qualquer inclinação pela ruptura com as classes dominantes. O populismo radical de Goulart representa, quando muito, aspirações de segmentos minoritários e mais atrasados da burguesia nacional.

A ausência de resistência ao Golpe Militar faz esse tipo de interpretação ganhar adeptos. Entre 1965 e 1967, amplia-se o número de dissidências atingindo até organizações formadas anos antes. Várias delas tinham raízes internacionais e não eram um fenômeno particularmente novo. No Brasil, desde os anos 1930, movimentos trotskistas dão origem a partidos rivais do PCB, como a Liga Comunista Internacionalista ou o Partido Operário Leninista. Com o surgimento de
novos países comunistas, que, às vezes, não aceitam as mudanças de
rumo da política soviética, as dissidências proliferam. No início dos anos
1960, além do PCB e do Partido Operário Revolucionário Trotskista
(PORT), havia o Partido Comunista do Brasil (PC do B) – primeiro de
inspiração chinesa e depois albanesa –, a Organização Revolucionária
Marxista – Política Operária (Polop) e, por fim, a Ação Popular (AP),
moderada, pelo menos em sua fase inicial, e vinculada ao que veio a ser
conhecido como catolicismo progressista.

Nesses grupos nascem propostas de luta armada. Há, sem dúvida, inúmeros matizes entre uma tendência política e outra. No entanto, a perspectiva de uma revolução iminente parece ser um traço comum às diversas siglas. Paradoxalmente, esse engajamento radical mantém vínculos com algumas ideias do desprezado PCB e do nacionalismo desenvolvimentista. Generaliza-se, por exemplo, a noção de que o capitalismo brasileiro entrara em uma fase de estagnação. A não realização das reformas de base é responsável por isso. Acreditava-se que as classes dominantes dependiam de um governo ditatorial para continuar existindo, sendo em vão a luta pelo retorno à democracia.

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A novidade do período é que os grupos revolucionários recém-formados
recrutam militantes predominantemente na classe média. Havia
ainda, em partidos que aderiam à luta armada, o predomínio de
estudantes e professores universitários. Esses segmentos, segundo os
processos da justiça militar, respondem por 80% do Movimento de
Libertação Popular (Molipo), 55% do Movimento Revolucionário 8 de
Outubro (MR-8) e 53% do Comando de Libertação Nacional (Colina), para mencionarmos apenas alguns exemplos.

Outro dado importante é a predominância de menores de 25 anos nos diversos agrupamentos revolucionários. O aparecimento de numerosos jovens, não necessariamente pobres ou miseráveis, dispostos a lutar contra os poderes constituídos não é um fenômeno exclusivamente brasileiro. De certa maneira, isso traduz certas mudanças que ocorriam na juventude em escala mundial. Durante a maior parte do século XX, o ensino universitário foi acessível a um grupo extremamente reduzido; nos anos 1960, porém, essa situação começa a se modificar.

O caso brasileiro é típico: entre 1948 e 1968, o número de estudantes
universitários passa de 34 mil para 258 mil; no mesmo período em que a
população brasileira dobra, o número de jovens que frequentavam
universidades aumenta oito vezes. O crescimento desse segmento tornao
cada vez mais capaz de influenciar politicamente a sociedade.
Tão importante quanto essa mudança é a alteração do quadro
político mundial. A partir dos anos 1940, o mundo é sacudido por
revoluções nacionalistas na Ásia e na África. O impossível parecia
ocorrer: países pobres do Terceiro Mundo conseguem vencer antigos
colonizadores europeus. Coroando essas transformações, em 1959, um
pequeno grupo de guerrilheiros faz uma revolução em Cuba, enfrentando
a oposição do tradicional partido comunista local e dos Estados Unidos,
que na época desfruta o título de maior potência econômica e militar do
mundo.

Mais ainda: a revolução é um fenômeno da alta cultura. Entre seus
partidários estão refinados romancistas, filósofos e artistas europeus e
norte-americanos. No Brasil, algumas das produções culturais
extraordinariamente bem-sucedidas – como o cinema de Glauber Rocha – revelam o lado positivo da ruptura radical com o passado. Ao longo dos anos 1960, surge uma valorização de um novo nacionalismo  que também representava
uma resposta à forte influência cultural norte–americana, interpretada
como uma ameaça à identidade nacional, pois, ao contrário da
europeização do século precedente, não se restringia a grupos de elites,
destinando-se ao conjunto da população.

Vista a partir de hoje, a luta armada parece algo politicamente
ingênuo ou até incompreensível, mas, na época, é fortemente marcada
pelo sentimento nacional e de justiça social, em um mundo onde
revoluções que pareciam impossíveis estavam ocorrendo. Como, porém,
se organiza essa luta? Em primeiro lugar, é necessário lembrar que
defender a revolução imediata nem sempre implica pegar em armas. Os
agrupamentos de esquerda que assim agiram, geralmente adotaram os
princípios do foquismo, teoria elaborada a partir do exemplo da revolução
cubana, em que um pequeno grupo guerrilheiro inicia um processo
revolucionário no campo.

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Para tanto, primeiramente, são necessários recursos financeiros. Em
1967, inicia-se uma série de roubos a bancos por parte dos grupos
guerrilheiros, processo que se arrasta até o início dos anos 1970 e
resulta em cerca de trezentos assaltos (ou, como se dizia na época,
desapropriações revolucionárias), com a arrecadação de mais de 2
milhões de dólares. Na prática, a guerrilha – salvo no caso do Araguaia –
não se estende ao campo. À medida que o sistema repressivo realiza
prisões, o emprego sistemático da tortura faz com que mais e mais
revolucionários sejam capturados. Em 1969, a própria dinâmica do
movimento guerrilheiro é alterada, passando a ter como objetivo resgatar
os companheiros das masmorras militares. Os assaltos a bancos vão
dando lugar a sequestros – dentre os quais os dos embaixadores norteamericano,
alemão e suíço no Brasil –, cujos resgates são a libertação de prisioneiros políticos.

Alegando a ameaça comunista e acentuando uma tendência de endurecimento, que vinha desde o ano anterior – com a eleição do general Costa e Silva em 1966 –, o governo militar se torna cada vez mais ditatorial. Nesse contexto é fortalecida a doutrina de segurança nacional, que torna prioridade entre as forças armadas a luta contra a ameaça interna, e não mais a defesa contra inimigos
estrangeiros. Assiste-se também à ampliação das redes de espionagem
e de repressão. Paralelamente ao Serviço Nacional de Informações
(SNI), criado em 1964, atuam agora outras organizações, como o Centro
de Informações da Marinha (Cenimar), a Operação Bandeirantes (Oban)
e o Destacamento de Operações de Informações – Centro de
Operações de Defesa Interna (DOI-Codi).

Até a oposição legal deixa de ser aceita. A Frente Ampla composta por Carlos Lacerda e João Goulart, que defende bandeiras democráticas, como eleições diretas, anistia e nova Constituição, é proibida em 1968. A recessão e o declínio do poder de compra dos salários fazem, por sua vez, com que o movimento sindical renasça. Greves envolvendo milhares de operários ocorrem em Minas Gerais e
São Paulo. No mesmo período, manifestações estudantis cruzam o país,
culminando com a Passeata dos 100 mil em 26 de agosto de 1968. A
resposta dos militares: maior endurecimento do regime. Em 13 de
dezembro é assinado o AI-5: com ele, o presidente da República passa a
poder, a bel-prazer, fechar desde Câmaras de Vereadores até o próprio
Congresso Nacional, nomear interventores para qualquer cargo executivo,
cassar os direitos políticos de qualquer cidadão e também suspender o
recurso ao habeas corpus.

Mas se 1968 é o ano do auge repressivo da ditadura, é também o da
retomada do crescimento econômico. O modelo econômico adotado
rende finalmente seus frutos e o Brasil, até 1973, apresenta taxas
bastante elevadas de desenvolvimento industrial, superando mesmo os
10% ao ano. Fala-se em milagre econômico, mas um milagre que, alguns
anos mais tarde, cobraria seu preço. O aumento dos investimentos das multinacionais, como se previa desde os anos 1950, não é acompanhado pelo crescimento do setor de insumos industriais e de energia, e o resultado disso é a necessidade de importar esses produtos e petróleo. A economia brasileira entra aí em um labirinto de endividamento.

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O milagre econômico também amplia, em relação aos padrões da
economia brasileira da época, o mercado de produtos industriais de
custo elevado, como os automóveis. Tal decisão gera um quadro
perverso, no qual a concentração de renda torna-se necessária para
garantir o funcionamento do sistema econômico. Bem ou mal, porém, a
ditadura conta com algum grau de aprovação popular. No início dos anos
1970, embalados pela vitória da Arena, partido de sustentação do
governo, os militares empenham-se em campanha de legitimação do
novo regime. O general Emílio Garrastazu Médici, presidente empossado
em outubro de 1969, lança a campanha “Brasil, grande potência” e também, com a abertura da Transamazônica, tenta reviver a euforia da época da construção de Brasília.

Em 1974, as consequências mundiais do aumento do custo do petróleo,associadas à política irresponsável de endividamento externo, lançam a economia brasileira novamente em crise. Nessa época, os antigos grupos vinculados à ala legalista das forças armadas recuperam o terreno perdido. A eleição, no referido ano, do general Ernesto Geisel é considerada um marco dessa transição. O novo
presidente defende desde o primeiro dia de posse uma abertura política
“lenta, segura e gradual”. Para tanto, enfrenta os grupos da linha-dura,
altera os comandos militares e procura lentamente subordinar ao
Ministério da Justiça os aparelhos repressivos militares, que haviam
saído do controle.

Desde 1972, os movimentos armados urbanos não existem mais. A
guerrilha, que sobreviveu apenas no Araguaia, foi destroçada em 1974.
Os vários tentáculos repressivos passam a perseguir grupos que não
participaram desse tipo de enfrentamento, como foi o caso dos militantes
do PCB e de membros da Igreja.

O processo de abertura, como prevê Geisel, não é linear.
Expressivos segmentos militares fazem oposição ao presidente, contando inclusive com o apoio de parte, igualmente expressiva, da Arena. A eles, Geisel eventualmente cede, endurecendo o regime, principalmente após o desempenho eleitoral do MDB nas eleições de 1974. Dois anos mais tarde é aprovada a
denominada Lei Falcão, em alusão ao nome do ministro da Justiça da
época. Através dessa lei ficam proibidos, em programas eleitorais
televisivos, o debate e a exposição oral de propostas e críticas ao
regime. Mais ainda: em 1977, reformas legais criam meios de a Arena
manter presença majoritária no Congresso, apesar das derrotas
eleitorais. Amplia-se a representação parlamentar do Norte e do
Nordeste e institui-se a indicação de senadores pelo próprio governo,
popularmente chamados de “senadores biônicos”.
Por meio dessa delicada engenharia política, Geisel garante a
própria sucessão. O novo escolhido é o general João Baptista de Oliveira
Figueiredo, empossado em 1979. Nessa eleição concorre o general Euler
Bentes Monteiro, apoiado pelo MDB e segmentos importantes do
empresariado brasileiro. Nem os mais beneficiados defendem a ditadura,
cujo fim não demoraria muito a ocorrer.

“Uma Breve História do Brasil”, de Mary del Priore e Renato Venâncio.

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Aloysio e Dilma, lutando juntos na juventude; agora, adversários políticos.

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