CONHECER, PERTENCER E AGIR

Por Natania Nogueira,

O texto de hoje é continuação de uma reflexão que comecei há algumas semanas, quando participei de uma mesa redonda sobre educação patrimonial. No geral, os três participantes da mesa, e aí eu me incluo, acabaram abordando três assuntos que, inevitavelmente, se interligavam: a necessidade de conhecer, o sentimento de pertencimento e a necessidade de ação.

Era uma mesa redonda que fazia parte de um projeto, ainda em andamento, que procura conscientizar professores do Ensino Fundamental sobre a necessidade da educação patrimonial nas escolas. O público, portanto, era bem específico. Eu achei a dinâmica do projeto muito interessante.

Estávamos em acordo sobre a necessidade de incentivar os professores a ampliarem seu conhecimento sobre o que era educação patrimonial. É muito fácil e muito cômodo impor uma lei ou uma norma que exija a educação patrimonial nas escolas, mas ela deve ser acompanhada de todo um aparato que tenha por objetivo preparar o professor para trabalhar o tema.

Conhecer é o primeiro passo para entender para reconhecer o valor de alguma coisa.Mas, no caso da educação patrimonial, não adianta apenas conhecimento, é preciso também despertar o sentimento de pertencimento. É uma necessidade humana estar ligado a alguma coisa, ter uma âncora, uma referência. Entretanto, o que torna alguma coisa uma referência?

Para responder a essa questão. eu penso na memória, preservada por meio das tradições, do patrimônio material e imaterial. Ela é uma referência ímpar. Nela podemos encontrar o potencial para vislumbrar o futuro a partir do passado. A memória é emocional. Ela mexe com sentimentos, com sensações. Quando assiste a uma folia de reis, o expectador também interage com a apresentação. Quando se visita um memorial ou um museu não se analisa friamente o ambiente, documentos ou objetos neles expostos. Quem não demostraria as mais variadas emoções ao visitar um memorial sobre o holocausto judeu, por exemplo?

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A História, junto com a memória, pode guiar a comunidade. Estamos construindo, dia após dia, o nosso futuro. O futuro é algo tão incerto e intangível quanto o presente é efêmero. O passado, no entanto, é uma referência que se multiplica a cada dia. Ele é quase concreto, enquanto o futuro tem em seu âmago a semente da incerteza, o passado nos oferece a segurança da experiência vivida.

Uma das coisas que nos faz sentir parte de um espaço geográfico, de um território, é o vínculo que temos com o passado. Nossa história é parte constitutiva da nossa identidade local. A história nos oferece os argumentos que podem ser utilizados para criar novas estratégias de sobrevivência individual ou coletiva. Ela pode fornecer a certeza da possibilidade.

A História pode mostrar que é possível construir o futuro, não um futuro que imite o passado, mas que possa nele encontrar repostas ou estímulos para novos projetos.  A “Era de Ouro”, aquele momento do passado, que fatalmente acaba sendo idealizado, não dever ser vista como algo que passou e que queremos ter de volta, mas a prova de que podemos construir um futuro melhor, uma prova da nossa capacidade de superação.

Mas a História pode ser usada também para fomentar o conformismo. Como a memória, a História pode ser colonizada. Conhecemos do nosso passado aquilo que convém às elites, aquilo que as enaltece e que subjuga aqueles que estão afastados do poder. Fomos por muito tempo condicionados a pensar naquilo que construímos não como um estímulo para um sucesso futuro, mas como uma marca do fracasso: fomos mas não somos.

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Eu vejo isso constantemente nos livros didáticos. Apesar das mudanças ocorridas nos últimos vinte anos ainda estamos presos a um ensino de história que omite o nosso agir. O mesmo livro que separa dois capítulos para a Revolução Francesa espreme a Conjuração Mineira e a Conjuração Baiana em apenas um, sendo que a última, que teve um grande apelo popular, fica compactada em apenas uma página. Quantas vezes na História do Brasil o povo pegou em armas e lutou contra a exploração?

Inúmeras!

Eu poderia dar vários exemplos, mas um em especial pode ilustrar bem o raciocínio que estou utilizado aqui. Em 1858, a cidade de Salvador foi sacudida por uma série de manifestações populares contra o aumento do preço da farinha de mandioca, considerada o pão do povo. Aos gritos de “carne sem osso e farinha sem caroço”, a turba popular ganhou as ruas da cidade. Foi uma luta contra a carestia, onde o povo exigiu providências da administração local. É o povo brasileiro mostrando que sabe agir.

Mas o agir do povo fica sob a sombra da história de príncipes, presidentes e coronéis. Memória e História colonizadas deixaram impressão de que por mais de 500 anos nossa história se resumiu a práticas lamentáveis como a da escravidão, que mostra só uma face do negro na história do Brasil, como se ele fosse um personagem sem força e sem vontade; aos líderes que nos concederam a independência, como se dela não tivessem participado brasileiros patriotas que deram sua vida para garantir a nossa emancipação; que trouxeram a República; que concederam aos trabalhadores seus direitos.

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E a nossa história de lutas, onde está?

Cultivamos um saudosismo inútil de algo que nem ao menos vivenciamos e alimentamos a certeza da impossibilidade de resgatar a glória passada. Ora, passado é passado, ele contribui para o futuro na medida em que nos estimula no presente. O oposto, na minha opinião, é o mal uso da nossa potencialidade individual e coletiva.

Motim-Carne-Sem-Osso

Revolta da Farinha (1858) foi um movimento popular contra a carestia. Uma da lei publicada nas posturas municipais de Salvador estabeleceu que a farinha de mandioca só poderia ser vendida em depósitos específicos (“tulhas”). Medida que deveria controlar o preço do produto acabou tendo ação contrária. Entre 1851 e 1858, o preço da farinha de mandioca tinha subido cerca de 300%, provocando a revolta da população carente.

4 Comentários

  1. Luciana Guarnieri Zampa Reis
    • Natania
  2. Miriam
    • Natania

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