Educação e exibicionismo: as lições da ponte aérea

O Brasil, “país de contrastes”, tem sido fonte de reflexão para muita gente! Dentre os mais chocantes está aquele ditado pelas diferenças entre educados e mal-educados. E me refiro, aqui, ao que o Aurélio define, simplesmente: o “conhecimento e prática dos usos de sociedade: civilidade, delicadeza, polidez, cortesia”. Será que jamais conhecemos um processo civilizatório capaz de nos educar como em outros países? Tudo indica que não. Uma viagem pela ponte aérea Rio-São Paulo comprova que um dos maiores contrastes do Brasil é o de pessoas que têm dinheiro mas nenhuma, nenhuma educação, mesmo!

Tudo começa no hall de espera. Dezenas de celulares tocam ao mesmo tempo numa orquestra infernal. As vozes se sobrepõem uma às outras. Talvez a ligação não esteja boa; mas, existe, sobretudo, um desejo narcísico de exibição. As pessoas simplesmente não se dão conta do grotesco da mímica com a boca, da gesticulação histérica das mãos, do olhar que convida o indivíduo que está ali, na frente, a participar à revelia de uma conversa que devia ser privada, mas que se torna pública.

O horror seguinte é o do momento do embarque. Empurrando-se diante da porta de vidro, como se esperassem a largada da maratona de Nova York, a maior parte dos passageiros franze o cenho e empina o nariz, porque a comissária de bordo convida, gentilmente, os idosos e mães com crianças a embarcar primeiro. Tudo bem, que exageros há! A jovem mãe, passa, altaneira, com seu pimpolho seguida pela babá, o marido, a cunhada, a sogra e a amiga da sogra! Mas é um caso em mil. Na maior parte das vezes, apresentam-se jovens mulheres atrapalhadas com enormes sacolas, onde levam fraldas e mamadeiras, carregando nos braços um pequerrucho pesado, adormecido ou chorão. Ninguém recua um passo para deixá-las passar. Nenhuma menção para aliviá-las da carga. Seu trajeto entre o fundo da sala e a porta salvadora é humilhante: elas se arrastam, se desculpam, esbarram nas malas. Ninguém se mexe.

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Os idosos, coitados, são examinados dos pés à cabeça, para um diagnóstico cerrado de suas potencialidades. Se caminharem com destreza, azar que tenham 80 anos. Devem é disputar com o executivo de 30, em igualdade de condições. Uma garota acidentada, mancando discretamente, passa sob murmúrios desaprovadores. Jovens, mesmo com problemas físicos, são vistos como ameaças na disputa pela melhor poltrona. Se chove, e o ônibus que vai conduzir os passageiros ao avião está cinco minutos atrasado, uma carga de críticas é desferida “em alto e bom som” ao tímido funcionário da companhia aérea.

Há sempre um tipo sanguíneo, de cabelos pintados que, para horror da classe, apresenta-se aos gritos como jornalista e ameaça denunciar os famigerados cinco minutos de atraso. “Isso não fica assim… “. Já vai tarde, penso solidária com o estóico funcionário. Mas a via crucis não termina quando se deixa a sala de espera para trás, carregado pela onda de gente que sai na correria. Ao entrar no avião, reparo que as primeiras filas de poltronas foram tomadas por passageiros que ocupam as cadeiras do meio com seus pertences pessoais. A bolsa da Prada exibe o fecho com a grife estrategicamente para cima. Mensagem: “sou rica e poderosa”.

A coleção de jornais do executivo sentado do outro lado ocupa o restante da poltrona. Mensagem: “favor não perturbar”. Delicadamente, peço licença para sentar-me “no meio”. Sou fuzilada por dois pares de olhos. Afinal: que audácia! Não estou vendo que se trata de um lugar marcado para que eles possam viajar com todo o conforto? Que procure um lugar no fundo. Por insistir, sou punida com uma viagem na qual mal posso abrir meu modesto livro. Prensada entre dois jornais e dois poderosos braços, tampouco gozo do direito de repousar meu braço no braço da poltrona.

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Em uma obra clássica, chamada O processo civilizatório, o alemão Norbert Elias descreveu o lento processo de aparecimento das noções de civilidade no mundo europeu, entre os séculos XV e XVI. Lá, há muito tempo, as pessoas usavam as mãos em vez de garfos, assoavam-se nas mangas ou nos dedos, usavam as toalhas de mesa para limpar a boca e a faca com que cortavam nacos de carne para apunhalar os vizinhos inoportunos. As necessidades físicas eram satisfeitas em praça pública e lamber as mãos, para desengordurá-las, era comum. A educação, mostra-nos ele, longe de ser “natural” é fruto de um processo histórico que consumiu alguns séculos.

A chamada civilização dos mores, fez com que crescesse o controle sobre tudo o que restava da natureza animalesca do homem, transformando cada gesto elementar da vida cotidiana — desdobrar um guardanapo, utilizar a faca em vez dos dentes, o banheiro em vez do mato —, num ritual de integração à vida social. Uma viagem pela ponte-aérea revela-nos, contudo, que estamos bem longe de ter passado por um processo civilizatório.  Aquilo que para uns é história e passado, para outros, nós, é ainda selvageria “aqui e agora”! – Mary del Priore.

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Aeroporto de Guarulhos, em São Paulo.

5 Comentários

  1. Rosa Maria
  2. Marcus
  3. Stela Camara
  4. Maria Senra

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