Casamento, amor e sexo: o que mudou?

     Laços formais de parentela se encontram em todos os grupos humanos sob formas diversas. Há culturas onde a filiação é separada da parentela. Não são os pais biológicos que educam seus filhos, mas os tios do lado materno. A célula familiar não é uma fórmula universal e existem sociedades onde não há casais fixos. A poligamia ainda existe em várias regiões do mundo e a família extensa, constituída por parentes e afins, também. Nessas últimas, o casal insere-se num sistema de reciprocidade e homens e mulheres constituíam esferas de atividades e papéis sociais independentes. Os filhos são confiados a um grupo mais vasto, permitindo que todos trabalhem e a parentela é muito valorizada.  A família mononuclear, apoiada no casamento, é invenção recente e está ligada à emergência do capitalismo e a certa noção de amor-paixão. Fórmula para todos? Não. Há culturas, caso da Índia contemporânea ou do Japão, onde o casamento não se baseia majoritariamente nos sentimentos, embora esses possam existir ou se desenvolver. Aí, a parentela ainda é um critério fundamental. Eles dizem que seu tipo de casamento é como acender o fogo sob uma panela de água fria. E o nosso, apagar o fogo, numa em ebulição.

    O Concílio de Latrão, reunido em 1215 pelo papa Inocêncio III elaborou a legislação do matrimônio, alçado a sacramento em 1439, num outro Concílio: o de Florença. Desde o século VIII a Igreja se bate em favor da monogamia. Os reis francos eram polígamos e a poligamia, um meio de exibir riqueza, poder e alianças políticas. Clotário, por exemplo, teve seis esposas! Um exagero que interferia tanto em questões dinásticas, quanto enfraquecia a noção mesma de casamento. A reforma gregoriana no século XI define, portanto, que clérigos devem respeitar o celibato e os casados, a monogamia. Uns quanto os outros nunca foram totalmente fiéis às exigências da Igreja. Concubinas e amantes, como sabemos, resistiram. Mas a poligamia desapareceu.

     Tais decisões atingiram, de uma maneira ou de outra, as normas comunitárias que, de alto a baixo da escala social regulavam as uniões conjugais no Ocidente cristão. Variando regionalmente, segundo tradições e culturas dos povos europeus, os ritos matrimoniais espelhavam sempre uma aliança que atendia, antes de tudo, a interesses ligados à transmissão do patrimônio, a distribuição de poder, a conservação de linhagens e ao reforço de solidariedades de grupos. Simplificando, diríamos que eles mais eram uma associação entre duas famílias – diferentemente de hoje, que é uma associação entre duas pessoas – para resolver dificuldades econômicas e sociais, sem padre, nem altar.

 

 

     Até o século XX, o Ocidente cristão, e nele, o Brasil, viveu uma era de constrangimentos e recalques quase sem limites. Durante mais de quinhentos anos, teólogos fulminavam de suas cátedras contra tudo o que dissesse respeito ao corpo, recusando a noção de prazer e exaltando a virgindade. Esta ética sexual se impôs com maior ou menor rigor, dependendo de épocas e lugares por muito tempo. E ela impregnou as mentalidades. Ao associar sexualidade e pecado – o que vigorou até meados do século passado – a Igreja impedia que amor e sexo se dessem às mãos dentro do casamento. O fim exclusivo do matrimônio era a reprodução. Jamais a paixão ou o prazer.

    Em função da eficácia desta cruzada moral contra a associação entre amor e sexo, entre corpo e alma, diversos autores consideram que o amor romântico, tal como o conhecemos, é um fenômeno tardio. Ele teria surgido, apenas, durante processo de industrialização e urbanização que teve lugar na Europa do século XVIII. Historiadores britânicos afirmam que “o amor como base do casamento”, talvez seja a mais importante mudança nas mentalidades, ocorrida no limiar da Idade Moderna ou possivelmente nos últimos mil anos da “história ocidental”. Já os franceses concordam com que uma “revolução afetiva teria se localizado predominantemente no século XVIII e início do século XIX”, modificando radicalmente os sentimentos amorosos.

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     No passado, os brasileiros, principalmente nas famílias mais abastadas, eram reféns do casamento por interesse, como mostra José de Alencar em seu romance Senhora. Considerado um negócio tão sério que não envolvia gostos pessoais, ele se consolida, entre as elites. As esposas eram escolhidas na mesma paróquia, família ou vizinhança. Ritos sociais passavam a organizar, então, o encontro de jovens casais que passavam, sem intermediários, ao casamento. Namoro: pouco ou nenhum. Noivado, rápido. Afinal, os futuros cônjuges mal se conheciam. Quem decidia seu destino eram os pais.

      O resultado é que documentos históricos revelam que as mulheres casadas mais estimavam do que amavam seus maridos e que o faziam num padrão de comportamento que aparece de forma repetitiva. A esposa devia amar o companheiro “como fazem as boas, virtuosas e bem procedidas mulheres”, explicava um juiz eclesiástico em pleno século Dezoito. Ao manter o amor fora da relação conjugal, tais esposas estariam sublinhando a superioridade do casamento de razão sobre o coração. Afirmavam, assim uma tradição portuguesa que interpretava o casamento como uma tarefa a ser suportada: “casa de pombos, casa de tombos”, avisavam os ditados populares.

     O princípio básico que norteava tal escolha era o da igualdade, claramente enunciado nos tais provérbios: “se queres bem casar, casa com o teu igual”, “casar e comprar, cada um com seu igual”. Mas que tipo de igualdade deveria presidir a escolha do cônjuge? A de idade e de condição social. A escolha do par era ditada por questões práticas. Não, por interesse afetivo. Cada qual tinha um papel dentro do matrimônio: homens eram provedores. Mulheres, reprodutoras.

     Nas primeiras décadas do século XX, toda a ameaça ao casamento era alvo de críticas. O divórcio, por exemplo, era considerado “imoral”; “a pior chaga da sociedade”. Mesmo anticlericais, influenciados pelo Positivismo, eram contra. De fato, apesar das transformações que chegavam, o Código Civil de 1916 mantinha o compromisso com o Direito Canônico e com a indissolubilidade do vínculo matrimonial. Nele, a mulher era considerada altamente incapaz para exercer certos atos e se mantinha em posição de dependência e inferioridade perante o marido. Complementaridade de tarefas, sim. Igualdade entre homem e mulher, nunca. Ao marido, cabia representar a família, administrar os bens comuns e os trazidos pela esposa e fixar o domicilio do casal. Quanta a esposa, bem… esta ficara ao nível de menores de idade ou de índios. Comparado com a legislação anterior, de 1890, o Código trás mesmo uma artimanha. Aos estender aos “cônjuges” a responsabilidade da família, nem trabalhar a mulher não podia, sem permissão do marido. Autorizava-se mesmo o uso da legítima violência masculina contra excessos femininos. A ela cabia a identidade doméstica; a ele, a pública. Mas não sem um ônus: a de ser honesto e trabalhador em tempo integral. Este era o papel social que mais valorizava o homem. Quando a falta de trabalho ou qualquer desastre profissional o impedia de ser o único provedor da família, alguns chegavam ao desespero de suicidar-se. A pá de cal veio com um documento do Vaticano assinado por Pio XI. O Pontífice considerava uma “iniquidade abusar da fraqueza feminina” obrigando mães de família a trabalhar “por causa da mesquinhez do salário paterno”. Deixar a esposa ganhar a vida fora das paredes domésticas descuidando de deveres próprios e da educação dos filhos era, na visão machista da Igreja católica, uma vergonha!.

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     Era indisfarçável o conformismo da maioria das mulheres frente à condição de sujeição imposta pela lei e pelos costumes: serva do marido e dos filhos, sua única realização aceitável era dentro do lar. Sua família, era “ninho e nó” ao mesmo tempo. Ninho, pois, proteção contra agressões externas, muro contra a invasão de sua privacidade. Mas, nó, porque secreta, fechada, exclusiva e palco de incessantes tensões. A jurisprudência, por seu lado, acreditava que ou “cabia ao homem harmonizar as relações da vida conjugal” – como dizia o jurista Clóvis Beviláqua. Ou que a mulher era muito frágil, inapta, portanto para chefiar a sociedade conjugal.

     Na década de 70, brigas entre o casal? A razão era sempre do homem. Mas se razões houvesse, melhor para as mulheres resignarem-se em nome da tal felicidade conjugal. A melhor maneira de fazer valer sua vontade era a esposa usar o “jeitinho”: assim o marido cedia, sem saber. E mais importante, sem zangar-se. Nada de enfrentamentos, conversa entre iguais ou franqueza excessiva. Se quisesse comprar um vestido, realizar uma viagem ou recuperá-lo depois de um affair extra-conjugal que usasse o jeitinho.  Nada de ser “exigente ou dominadora”. O melhor era sempre colocá-lo em primeiro lugar, agindo de forma “essencialmente feminina”. O “temperamento poligâmico” dos homens justificava tudo: “mantenha-se no seu lugar, evitando a todo o custo cenas desagradáveis que só servirão para exacerbar a paixão de seu marido pela outra […] esforce-se para não sucumbir moralmente, levando tanto quanto possível uma vida normal, sem descuidar do aspecto físico”. Afinal, no entender das conselheiras sentimentais que se multiplicavam na imprensa, “o marido sempre volta”. A grande ameaça que pairava sobre as esposas, como já visto, eram as separações. Além do aspecto afetivo, as necessidades econômicas – pois a maioria das mulheres de classe média e alta dependia do provedor – e do reconhecimento social – as separadas eram mal vistas – pesavam a favor do casamento a qualquer preço.

      A partir dos anos 80, a chegada da pílula anticoncepcional e a inserção das mulheres no mercado de trabalho trouxeram muitas mudanças. Com liberdade sexual e financeira as mulheres optaram por novos papéis. Nos anos 90, uma em cada cinco famílias brasileiras já tinha chefia feminina. Deixa de ser vergonha trabalhar fora de casa e a mulher vai à busca de um lugar ao sol, acumulando trabalho e criação de filhos. Ela se torna mais exigente consigo mesmo, oferecendo aos filhos um ambiente mais equilibrado. Dentro do inferno conjugal, o resultado sempre foi negativo para a prole. Os dogmas religiosos interferem menos e 21% dos casamentos acabam em separação. Essa, contudo, não é boa para a mulher. O IBGE mostra que homens divorciados têm quatro vezes mais chance de recasar do que mulheres em igual condição. “Homem não esquenta lugar na comunidade de solteiros”, dizem as enquetes. A mulher passa por delicado ritual para apresentar namorado aos filhos. E ela precisa enfrentar seu temor que este diminua atenção que lhes é dada agravando uma segunda perda. Um abismo separa a condição de ex-casados.O homem vai em busca de medalha de Don-juanismo. Já a mulher “caçadora” é crucificada. O padrão de vida de todos cai: o casal separado fica 25% mais pobre. Quando o homem tem outra companheira para sustentar, a ex-mulher torna-se 35% mais pobre. Se ele se torna pai, numa segunda união, a primeira família fica 50% mais pobre. A ex-mulher tem que trabalhar. No Nordeste, sucessivas migrações e a busca de oportunidade no Sudeste consolidam o “matriarcado da pobreza”.

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     No século XXI, temos mais e mais mulheres presentes no mercado de trabalho. Representam metade da força nacional de trabalho. Com dinheiro, elas não ficam mais casadas por conveniência ou esforço. Independentes, recusam a infelicidade. Os álbuns de família passam a integrar novos atores. É a família mosaico: padrastos, madrastas, meios irmãos e produção independente. 47% dos domicílios têm pai ausente. Um em cada quatro casamentos termina em divórcio. Os homos saem do armário: “-pai, mãe, sou gay”. “Ser casado” tem uma nova definição: é ser livre, junto. Se no passado, as razões para a separação eram traição, problemas financeiros e violência, agora, basta a “falta de entrosamento”. Segundo o IBGE, as mulheres continuam casando por amor. E os homens, para constituir família.

     Nas últimas décadas, teve início um movimento, fruto de séculos de transformações: o que procurou separar a sexualidade, o casamento e o amor. Foi o momento de transição, – transição, diga-se, muito lenta – entre o amor idílico dos avós para a sexualidade obrigatória, dos netos. Ninguém mais quer se casar, sem “se experimentar”; jovens consideradas por seus parceiros “frígidas” são descartadas dos jogos amorosos; as mulheres passam a focar no orgasmo. O domínio da reprodução, graças à pílula vai consolidar esta liberação. A ciência vai se impondo sobre a ideia de pecado sexual.

      Em toda a história do amor, o casamento e a sexualidade estiveram sob controle; controle da Igreja, da família, da comunidade. Só o sentimento, apesar de todos os constrangimentos, continuava livre. Podiam-se obrigar indivíduos a viver com alguém, a deitar com alguém, mas não a amar alguém. As coisas mudaram. Apesar dos riscos da AIDS, a sexualidade foi desembaraçada da mão da Igreja, separada da procriação graças aos progressos médicos. E mais, o prazer foi desculpabilizado pela psicanálise e mesmo exaltado. Hoje, a grande ausência de desejo é que é culpada. O casamento não é mais obrigatório e ele escapa às estratégias religiosas ou familiares; o divórcio não é mais vergonhoso e os casais têm o mesmo tratamento perante a lei. A realização pessoal se coloca acima de tudo: recusamos a frustração e a culpa. Oscilamos entre o desejo de segurança e a liberdade. Mas não sabemos se tudo isto são conquistas ou armadilhas.

  • Texto Mary del Priore. 

“The wedding morning”, John F. Bacon.

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  1. Silvio Rodrigues

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