Corria o ano de 1899 na cidade de São Paulo. Era domingo e fazia sol. A igreja do Sagrado Coração, colada ao colégio do mesmo nome, recebia os primeiros fiéis. Da longa torre, doação de uma devota rica, os sons alegres do sino enchiam o bairro de hora em hora. O jardim da Luz, ponto de encontro da cidade, acolhia as famílias que faziam passeios e piqueniques. Num canto do parque com grandes árvores e bancos pintados, acontecia um teatrinho. Meninas de chapéus e luvas de algodão e petizes em roupas de marinheiro aplaudiam a encenação com bonecos.
Um bulevar arborizado abrigava os transeuntes.Um pouco adiante, os Campos Elíseos exibiam lindas casas em estilo francês ou de arquitetura clássica italiana. Lá moravam industriais e comerciantes, gente que então mandava no país, além dos ricos barões do café, que tinham deixado suas fazendas havia pouco. Eram tempos da política do “café com leite”, em que davam as cartas os poderosos de São Paulo e Minas Gerais. Eles eram a força dominante da Primeira República.
Por conta do dinheiro e do poder adquiridos nos últimos anos em que o preço do café esteve em alta, a cidade perdeu seu aspecto provinciano. E, com notável rapidez, casas de taipa e rótulas cederam espaço para edificações em tijolos, decoradas com motivos alemães, normandos e árabes. Antigos templos tinham sido demolidos e as igrejas novas, como a do Sagrado Coração ou a catedral, estampavam estilo eclético ou gótico. O estrépito das rodas dos fon-fons, dirigidos por choferes, enchiam o ar. A linha de bonde, recém-inaugurada, cortava o bairro da Luz, trazendo as damas elegantes com grandes chapéus, matronas agasalhadas em mantilhas, moças em roupas engomadas e bandos de estudantes ansiosos para namorar. Os burros que puxavam os vagões tinham sido deixados para trás e agora a companhia Light and Power explorava os transportes públicos, movidos graças à fada-eletricidade.
Não faltavam os smarts, rapazes elegantes, que aguardavam nos finais da linha. Ficavam ali para ver as senhoras descerem do bonde. Espiavam- lhes, com enlevo erótico, um pedaço do tornozelo por cima do cano da botinha, sonhando com seus joelhos ou as ligas de seda que prendiam as meias. A estação da Luz, construída por ingleses, com linhas que se cruzavam vindas de Santos, Itu, Mogi e Sorocaba, via passar as sacas do precioso café que fizera a fortuna do país nas últimas décadas do século XIX e também os viajantes que chegavam à capital do estado. Nos vagões eram transportados igualmente operários que moravam ao longo das vias férreas, na Lapa, Barra Funda ou Pari e que, nos fins de semana, vinham ao centro perambular.
Em 1901, havia 94 indústrias na capital: de fundições a fábricas de banha, cerâmica, chita, artefatos de madeira, fósforos e chapéus. A classe operária era composta de 90% de italianos e havia muitos estrangeiros ou forasteiros vindos de outras partes do Brasil para São Paulo. Sob as abóbadas de vidro e ferro da estação, sons se misturavam aos gritos dos vendedores de caldo de cana, frutas ou biscoitos que trabalhavam nas plataformas.
O Liceu de Artes e Ofícios do Sagrado Coração de Jesus tinha sido fundado para ajudar os órfãos, sem recursos. Mas havia também uma preocupação em educar a juventude, em todo o país. A campanha em prol da escola seria “tão santa quanto a da escravatura”. Era a “abolição da ignorância” insistia o conhecido político Rui Barbosa. Havia que se combater a “casta de ignorantes”, evitando estabelecer “a inferioridade de uns sobre outros desde a meninice”, bradava o futuro prefeito de São Paulo, Washington Luís. A Tipografia Alemã, na rua do Comércio, a da Tribuna Liberal, no largo do Palácio, e a de Jorge Seckler se encarregavam de imprimir os livros que os paulistanos consumiam e que deveriam combater a falta de instrução. – Mary del Priore (“Matar para não morrer”)
Só por essa descrição típica dos livros da Mary, já fiquei interessado em ler “Matar para não morrer”.
Excelente.
Livro singular!
Recomendo.