A primeira cena é clássica: a criança abre o presente, sorri, está contente. Mas a segunda cena também: muxoxos, palavras condescendentes, troca de implicâncias entre os pais. Seus corpos falam sem nada dizer. A tensão aumenta. A corrente elétrica instala- se entre pólos contrários. Eles se evitam, se procuram, se encostam, se irritam. Uma pergunta aciona a descarga: “mas o que é que você tem?”.
A tal pergunta assinala o mal-entendido, a distância entre o que cada um deseja, a falha na demanda nunca atendida. As portas batem, os lábios cerram-se, as lágrimas rolam, os insultos explodem contra a parede. Eles se dizem coisas inomináveis. E no interior dessa cena onde cada um tem seu lugar, percebe-se furtivamente uma criança que chora, refém da tormenta entre seus pais. É a criança a quem se pede que seja testemunha, que escolha um campo. Começa assim, muitas vezes, o duro aprendizado da separação.
Cada vez mais crianças “veem esse filme”. Na vida real, ou na virtual que lhes apresenta a televisão, lá está a briga, a violência, a disputa. Natural e incorporada ao cotidiano, sua reprodução é tão mais perigosa quanto ela não dá espaço para que a criança se revolte e diga: basta!
Mas há ainda outra cena na qual a criança ouve: “é para o seu bem”. E em nome desse bem quantas punições injustas, humilhações arbitrárias e violências cometidas. Quantos pequenos corpos não trazem as marcas desse texto ilegível? O pior é quando paira um silêncio suspeito na cena e a cortina cai. Diante do mutismo da criança, os pais concluem: “ela é difícil…”.
Vivendo numa sociedade açodada pela violência de fora (nas ruas, na cidade, no mundo) poucos de nós se dá conta da violência de dentro: no coração do social, na família. Alguns especialistas têm chamado a atenção para a “surdez psíquica” dos adultos; surdez que os impede de ouvir a voz das crianças. Afinal, não são elas que nos colocam as perguntas mais radicais ou espinhosas? “Por que vocês brigam?”: é uma delas.
Muitos pais negam a violência por sua total incapacidade de elaborá-la ou porque preferem reproduzi- la “para educar”. Não são poucos os que ainda não entenderam que a infância é lugar de alegria, sonho e felicidade. Ou, como dizia Cecília Meirelles: “nossa infância é o último esquecimento, derradeiro consolo e suprema poesia de nossa existência. Tudo mais pode cobrir-se de sombras — nossa infância será um sol nítido — mesmo quando não haja sido tão brilhante, nem feliz”. Boas palavras, as da educadora e poetisa, para serem sempre lembradas. – Mary del Priore.
“Tea Party”, Museu de Londres; “As Meninas”, de Velásquez.