Beleza e feiura: corpo feminino e regulação social

Por Joana de Vilhena Novaes.

Não há dúvida que nunca se falou tanto acerca do corpo, o qual entrou em cena da produção teórica às inúmeras práticas corporais. Por algum tempo deixado de lado pela psicanálise, o corpo readquire uma nova importância como forte agenciador das subjetividades contemporâneas.

Em uma sociedade imagética, em que o sujeito é definido por sua aparência, não há como desconsiderar o sofrimento psíquico decorrente de todas as regulações sociais que incidem sobre o corpo – sobretudo o feminino. Mulher e beleza são historicamente associadas como se verá adiante, e a feiura, hoje intimamente ligada à gordura e ao envelhecimento, é a maior forma de exclusão socialmente validada. (…)

Um bom ponto de partida para entender o tema é a investigação de suas origens etimológicas. O termo feiura tem sua raiz no latim foeditas e quer dizer, simultaneamente, sujeira e vergonha. No francês, a palavra laider é uma derivação do verbo laedere e significa ferir. Já no alemão, o termo utilizado para designar feiura é hässlichkeit, derivado da palavra hass, que quer dizer ódio. E finalmente, em japonês, a palavra feio, minikui, significa “difícil de ver”.

Em um interessante artigo sobre alteridade e estética, Feitosa busca demonstrar como estética e feiura não são categorias excludentes, ao contrário do que se costuma pensar. Por meio da análise histórica das inúmeras estéticas do feio, o autor busca desnaturalizar o que entende ser um senso comum na atualidade: a ideia de que o feio é a antítese do belo. Em síntese, como aponta Feitosa, “a feiura parece ser, nesse contexto, algo a ser melhorado ou eliminado”.

A definição do autor parece estar em consonância com a fala de nossas entrevistadas que, por meio de relatos contundentes, transmitem a dor e o difícil fardo que é carregar o gosto amargo da exclusão daqueles que são considerados esteticamente imperfeitos, bem como desviantes no cenário de moralização da beleza na qual o culto ao corpo é a religião. Entre os exemplos, a fala de um professor de ginástica: “Vai, gordinha, que você chega lá”, ou, no caso de demonstração de cansaço, “olha aonde a preguiça te levou até agora; maromba é coisa de gente guerreira, se quiser ter um corpo sarado precisa ser perseverante”.

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Finalmente, um dos relatos que melhor afirma a ideia da exclusão social infligida às mulheres gordas será, justamente, a negação de sua sexualidade, conforme apontado anteriormente. Nessa sofreguidão, a feia – ou a que não se julga bela – paga alto preço: torna a relação com o próprio corpo desprazerosa, angustiada e persecutória. De fonte de prazer a calvário, eis a perversão.

A fala do amigo de uma das entrevistadas evidencia como a imagem da mulher gorda é desvinculada da de beleza e, portanto, do poder de atratividade e incitação do desejo sexual masculino. Como se vê a seguir, caso desejem ser belas e atraentes, devem, primeiro, se livrar da gordura:

Um amigo meu uma vez me disse: se quiser ser desejada, emagreça, pois é óbvio que ninguém vai olhar para gordinha “cocota” e sim para a saradona “cascuda”. Agora, se quiser continuar se contentando em ser aquela garota apenas simpática – aí tudo bem, não falo mais nada, mas também não venha mais choramingar no meu ombro, infeliz, porque os carinhas só te querem como amiga. (Bianca, 29 anos, jornalista).

A forma como as entrevistadas relatam serem tratadas como seres desprezíveis e repulsivos e, simultaneamente, os papéis que muitas vezes se veem obrigadas a exercer, fazem pensar que, se na cultura grega a feiura não deveria ser representada, na atual, o sentimento crescente de lipofobia afasta dos espaços públicos a feiura indesejada dos gordos, bem como do nosso imaginário a presença dos esteticamente imperfeitos.

Além de tornar o corpo objeto de consumo e vitrine de seus méritos, a mulher passou a privilegiá-lo na construção de sua própria identidade: tudo o que sou é o meu corpo, está sobre ele, digo com ele. É a hipótese de que somos idênticos a um corpo e não a uma imagem, às paixões e aos sentimentos.

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Os gordos são, assim, os “novos feios”, como aponta Feitosa, categoria na qual se enquadram todos aqueles cuja reprodução das normas sociais da polis se dá de forma tosca, aparentando, aos cidadãos que ditam as regras locais, tratar-se de um estrangeiro, um desviante que, por definição, é aquele que as transgride por meio dos maus costumes. Portanto, dentro desses parâmetros, ser um bárbaro, estrangeiro e desviante é ser feio.

Acho que as pessoas confundem gordura com falta de educação. É um absurdo, fala sério, eu sei que eu tenho modos, só que como as coisas erradas em excesso, mas esse simples fato já faz de mim uma pessoa mal-educada por não saber, mesmo que privadamente, a hora de parar de comer. Atualmente, penso mesmo é que a gordura agride aos olhos. (Mariana, 29 anos, webdesigner).

 Nessa linha de raciocínio, seria errado dizer que os gordos são uma cópia mal-acabada daqueles que representam o ideal de beleza vigente? Se a feiura remete à finitude, à incompletude e, consequentemente, à própria morte, seria dessa ordem o estranhamento e a repulsa atual às figuras gordas?

Na estética, uma das formas tradicionais de o feio se apresentar é na comédia. Na Poética de Aristóteles, a feiura aparece em uma dimensão mais amena e não causadora de dor ou sofrimento, pois tem, no ridículo e no risível, uma de suas formas de expressão. Também nos gêneros literários da caricatura, da sátira, da paródia, da ironia e da anedota, o feio foi explorado esteticamente em sua dimensão risível.

Talvez fosse o caso de acrescentar aos gordos sua função social de pessoas engraçadas. A aceitação, por meio do ato de provocar riso, é um papel não negligenciável no imaginário sobre as pessoas com essa característica – vale lembrar dos “obesos benignos e malignos” descritos por Fischler.

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As entrevistadas falam acerca da zombaria causada ao serem percebidas tentando exercer sua sexualidade. Ao contrário do que pregava Platão, a atitude social de riso, como forma de desqualificação da figura dos gordos, parece ratificar a inferioridade atribuída a esses, colocando aqueles que riem em uma posição de superioridade. Aqui, a moeda de troca é a magreza.

No caso, o riso como resposta parece ser implacável: a agressividade expressa na forma de escárnio destitui a sexualidade de qualquer valor. O olhar social que dessexualiza a gordura é o mesmo que pode lançá-la na categoria de monstruosidade. Ao relatarem sentir-se como uma aberração, explicitavam o que sua figura evocava:

 Quando uma gordinha se aventura a entrar numa boate ou andar pela rua com uma roupa sensual, tem que fingir que não percebe os risinhos, os cochichos, ser alvo das pessoas apontando na rua, como se estivessem numa apresentação de circo, boquiabertas, onde são apresentadas a coisas exóticas, bizarras, aberrações da natureza. Se não estivesse acostumada a fingir que não percebo a reação das pessoas, viveria trancafiada dentro de casa e não sairia à rua para nada. (Mariza, 19 anos, estudante de engenharia).

Nesse contexto, é pertinente retomar a ideia platoniana de feiura. Para esse filósofo, tal revelaria não somente uma imperfeição da conduta e da moral, mas também redundaria em um problema de ordem ontológica – feiura é indicador de menos-ser.

Talvez a gordura seja o monstro que a medicina atual tenta combater. A obesidade e seus fatores de morbidade acenam como o grande mal que os discursos médico e científico se empenham em retardar – a morte, a dor, o sofrimento e a finitude – em suma, tudo aquilo que caracteriza a condição humana.


Trecho do capítulo 17 “Beleza e feiura: corpo feminino e regulação social”, de Joana de Vilhena Novaes, extraído do livro “História do Corpo no Brasil”, da Editora Unesp, organizado por Mary del Priore e Marcia Amantino.

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2 Comentários

  1. Kátia Vidal Telles

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