A pedagogia da fé

A formação de uma criança  era acompanhada de certa preocupação pedagógica que tinha por objetivo transformá-la num indivíduo responsável. Humanistas europeus como Erasmo e Vicente Vivés já tinham dado as pistas desta “educação básica”: desde cedo, a criança devia ser valorizada através da aquisição dos rudimentos da leitura e da escrita, assim como das bases da doutrina cristã que a permitissem ler a Bíblia em vulgata. No Brasil Colonial, “compêndios de doutrina cristã” como os escritos pelo padre João Felipe Battendorf em 1634 misturavam elementos de formação doutrinal com elementos de reflexão e leitura. Mas as exigências de formação não vinham só da Igreja.  Obras do tipo Contos e histórias de proveito e exemplo, como a que escreveu Gonçalo Fernandes Troncoso em 1575 ensinavam, por meio de estórias exemplares, o comportamento que era esperado, na sociedade portuguesa, de jovens de ambos os sexos. Temas como “a virtude das donzelas”, “os prejuízos das zombarias”, a desobediência dos filhos,  a fé na doutrina cristã e todo um leque de outros “ensinamentos” considerados fundamentais para uma boa educação eram visitados de forma a ficar gravados na memória da criança constituindo-se numa autêntica bula de moral e valores comuns.

Cartilhas de alfabetização e ensino da religião eram comumente usadas, tanto no aprendizado à domicílio, quanto naquele público. Sedimentando o trabalho que já deveria ter sido feito pela mãe, na primeira fase da vida da criança, tais cartilhas voltavam à carga sobre tudo o que dizia respeito à vida espiritual. A escola deveria ter um crucifixo ou diante do qual, ao entrar na escola, as crianças deveriam se persignar, ajoelhar e benzer pois “o sinal da santa cruz é o mais forte para vencer as tentações do inimigo comum”, Satã. Os mestres tinham que ensinar as crianças a rezar o Pai-nosso, Ave Maria (“explicando-lhes que contém em si a saudação angélica que o Anjo Gabriel veio a fazer a Senhora Ave Maria cheia de graça”), os símbolos da fé e rudimentos de teologia.

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Cabia aos mestres incentivar e controlar a confissão mensal de seus alunos, bem como a sua participação nas procissões do Santíssimo Sacramento, com cantos de “bendito e louvado”. Orações para serem ditas antes e depois das refeições, também era assunto de ensino: “”Senhor abençoai este sustento que nos dais para nutrição do nosso corpo e fazei-nos a graça que nos sirvamos dele, com temperança; e isto vos peço em nome do Pai, etc…”. E o mais importante: “faz-se precisamente necessário que os Mestres adotem a penosa tarefa de leitura aos meninos com algumas breves práticas com que se vão cristinianisando e instruindo; como Vós que já conheceis as Letras, que sabeis as sílabas e as palavras é necessário agora aprender as letras e a juntá-las com perfeição trabalhai com desvelo para ser bons católicos, bons cidadãos e para ordenadamente poderes manejar as vossas dependências principais a usar da vossa razão e concebei que Deus vos criou para o amares, servires e para gozardes a vida eterna….(E quanto ao ensino) Esta vida é cheia de dependências e  embaraços que vos causarão bastantes desvelos e mais crescidos se vos faltar a comodidade devem falar bem, ler e bem escrever…aquele que carece dessas circunstâncias é vistoso sujeito inerte servem as suas vozes de assunto para o escárnio e para a zombaria e para o desprezo. Aquele que não sabe ler passa a metade da vida cego e para poucas coisas é capaz o homem que não sabe ler e escrever”.

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Interessante é que nas festas religiosas, questões da formação pedagógica eram retomadas na forma de representações teatralizadas dentro das igrejas ou nas praças. Um papel de cordel, datado1758, espécie de material pedagógico auxiliar, descreve o diálogo mantido por “meninos de escola”. São eles “Florêncio, Roberto, Aurélio e Jerônimo” e seus personagens perguntam-se entre si, questões devidamente trabalhadas na escola:

            Florêncio: Que lei professais, menino,

a dos cristãos, piedosa,

a de Lutero, deleitoso

ou a falsa de Calvino?

            Aurélio: Só a Católica sigo

            Abomino as outras mais

            Pois são todas infernais

            Cheias de eterno Perigo…

            Jerônimo: Quem vos deu esta fé santa

            Que nós hoje professamos

            Foi um excelso menino

Um Deus, em forma de humano etc”

Pouco a pouco, a educação e a medicina vão burilando as crianças do Brasil colonial. Mais do que lutar pela sua sobrevivência física, tarefa que educadores e médicos compartilhavam com os pais, procurava-se adestrar a criança, preparando-a para assumir responsabilidade. Uma certa consciência sobre a importância deste preparo vai tomando forma na vida social.  O reconhecimento de códigos de comportamentos era um fenômeno, então, em via de estruturação até mesmo entre crianças. Tais códigos eram bastante diferenciados entre os núcleos sociais distintos: os livres e os escravos; os que viviam em ambiente rural e em ambiente urbano; os ricos e pobres; os órfãos e abandonados e os que tinham família, etc. Apesar das diferenças, o fator idade os unia. Aos “meúdos” convinha uma formação comum, quer dizer, cristã, e as circunstâncias sócioeconômicas convidavam-lhes a amoldar-se a diferentes tradições culturais e costumes sociais e educativos. Entre os séculos XVI e XVIII, com a percepção da criança como algo diferente do adulto, vimos aparecer uma preocupação educativa que traduzia-se em cuidados de ordem psicológica e pedagógica. – Mary del Priore.

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“A Sagrada Família”, de Juan Carlos Boveri.

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