A leitura como forma de lazer feminino

Sabe-se que mesmo no século XIX, a precariedade dos centros educativos, a instrução primária de curta duração e má qualidade e o estado de ignorância em que as mulheres eram mantidas foram alvo de críticas de viajantes estrangeiros, vindos de países onde as diferenças de educação entre os gêneros quase não mais existiam. A ênfase na vida doméstica e o escravismo só faziam agravar o “ritmo lento e pouco imaginativo no qual se desenrolava a vida das senhoras no Brasil”. O inglês John Mawe, por exemplo, nelas acusava  a falta de educação e de recursos de espírito além dos conhecimentos superficiais. Segundo o mesmo observador, ocupavam-se de trabalhos leves que nada tinham a ver com o que se aprendia na escola. Ao contrário, a instrução poderia colocar em risco o esquema de controle sobre esposas e filhas cujo apetite intelectual deixava a desejar; não deveriam dedicar-se à leitura, nem precisavam escrever porque “poderiam fazer mau uso da arte”. Lindley tampouco as via ler: “poucas mulheres podem ler”, anotava, taxativo.

Mas nada, contudo, as impedia de saber ler e de contrariar os pais, lendo livros para distração e lazer. As escolas para meninas de elite começavam a multiplicar-se. Em 1814, anúncios na Gazeta do Rio, indicavam a presença de professores particulares que as ensinavam “ler, escrever e contar”. De passagem por Recife, o francês Tollenare observou que os preconceitos sobre a educação feminina começavam a diminuir. Abertas para as influências europeias – leia-se, as modas e os modismos – as jovens educadas por freiras não se contentavam mais em aprender só “a costurar e a ler”. No Rio de Janeiro, livros eram oferecidos em lojas nas quais também, comerciava-se toda a sorte de quinquilharias: cartas de jogar, cera da Índia, tinta de escrever, estampas e desenhos, lustres, encerados e tapetes, vidros da Boêmia, imagens sacras e móveis europeus. Eram livros de pintura, de viagens, atlas, dicionários históricos, geográficos e mitológicos junto com xailes, leques e objetos de prata. É de se imaginar que as compradoras de tais artigos tão femininos, acabassem por manuseá-los. O número 13 da Gazeta do Rio de Janeiro, anunciava por sua vez um produto irresistível: leitoras interessadas em magia poderiam achar livros sobre a matéria “na loja da Gazeta”. Entre outros, a Defesa de Cecília Faragó acusada de feiticeira por 1$280, o Breve Tratado sobre as ações do Demônio, por 1$280, a História das Imaginações Extravagantes de Oufle, o célebre mago francês por  2$400.

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De passagem pelo Rio de Janeiro em 1822, a inglesa Maria Graham pode travar contato com uma dessas discretas mulheres leitoras. Uma delas, a jovem Dona Carlota, filha, filha do poderoso Brás Carneiro Leão e de Dona Ana Francisca Maciel da Costa, baronesa de São Salvador de Campos de Goitacases, especial por “seu talento e cultura acima de suas companheiras”, levou a viajante a conhecer a biblioteca do desembargador da Relação, composta por livros de direito, história e literatura geral, principalmente inglesa e francesa. E com a imperatriz Dona Leopoldina, no dia dos anos de D. Pedro, diz ter conversado “um bom pedaço […] sobre autores ingleses e especialmente acerca das novelas escocesas”. Embora possuidora de uma imensa biblioteca com obras de naturalistas e

relatórios de viajantes, D. Teresa Cristina era mesmo ávida consumidora dos romances de José de Alencar. As mulheres da família imperial, liam e gostavam de livros.

Como diversão, as novelas eram o grande sucesso, não apenas entre as mulheres da família imperial, mas entre outras leitoras.; novelas de “grande merecimento”, “acabadas de sair à luz”, mui galantes e divertidas” eram anunciadas por catálogos ou em anúncios de jornais. Marlise Meyer informa que a partir de 1816 “pode-se falar em explosão de novelas entre nós”. Narradas por autores, na sua grande maioria, anônimos, nelas, cruzavam-se “histórias” várias, sicilianas, inglesas, turcas, napolitanas, de ilustres aventureiros ou misteriosos desconhecidos. Virtudes e desgraças mil. Esposos que não o eram, órfãos perdidos ou abandonados, Joaninhas e Susaninhas, condessas, Anas de …., salteadores, cavernas, subterrâneas, ruínas, capelas permitiam evocar o famoso romance “negro” inglês […] e muitíssimos títulos recorrentes, em edições várias: Sinclair das Ilhas, Amanda e Oscar e Celestina, ou Os esposos sem o serem.Que leitora não gostaria desses envolventes assuntos?

Em 26 de setembro de 1843 um anúncio do Jornal do Comércio dá o toque da presença da verdadeira novidade do momento, anunciador da erupção prestes a sacudir a imprensa cabocla: “quem tiver a obra Mystères de Paris, por Eugène Sue, e quiser vendê-la, dirija-se à rua do Ouvidor, 87, loja de Mongie”. Segundo Meyer, o folhetim, em volume, em francês, já devia estar em franca circulação no Brasil. Enquanto isso, a Casa do Livro Azul, anunciava no começo do ano de 1844, a prata da casa:

“O filho do pescador: Novela feita para o entretenimento de uma moça bonita, cuja ação se passa no Rio, no lugar chamado Copacabana, composta por A. Teixeira”

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Entre 1839 e 1842 os folhetins-romance são praticamente cotidianos no Jornal do Comércio. Devorados pelas mulheres, o assunto era até frutos de comentário em jornais outros. É o caso, por exemplo, de A Vida Fluminense referindo-se “as leitoras do herói Rocambole”. O fato é confirmado por Machado de Assis que registrou: “é a curiosidade das filhas de família que lêem todos os dias o folhetim do Jornal do Comércio, cada qual mais doida para chegar ao fim da história. E a curiosidade de uma mulher é como uma mariposa ao redor da luz: não descansa enquanto não se satisfaz”.

E o que seguiam lendo? Orientadas por maridos e confessores, os tradicionais livros de oração, tratados morais que pareciam a Elizabeth Agassiz cheios de “banalidades sentimentais e frases feitas”. Mas não só. Nossas irmãs do passado já devoravam os romancistas franceses de Balzac, Eugène Sue, Dumas, pai e filho, George Sand. Liam também as já mencionadas “intrigas em pacotilhas e folhetins de jornais”, criticados por um viajante mais severo, não levando em conta, que foram tais leituras que criaram um público feminino para o romance, na Europa. Como bem diz Roger Chartier, lá  “o romance foi lido e relido, memorizado, citado e recitado. Os leitores eram tomados pelos textos que liam; eles viviam o texto, identificando-se com os personagens e com a trama. Toda a sua sensibilidade estava engajada nesta nova forma de leitura intensiva. Leitores, (que eram frequentemente mulheres) eram incapazes de
controlar suas emoções e suas lágrimas”. Isso certamente aconteceu quando as
leitoras tiveram acesso, em 1844, à tradução portuguesa de Os miseráveis de Víctor Hugo ou de A moreninha de Joaquim Manuel de Macedo à venda na inaugurada Livraria Garnier (1854) livraria que chegava a instituir até rifas para incrementar a leitura. Veja-se, por exemplo, o trecho abaixo de um romance-folhetim de época em que a personagem identifica-se com o conteúdo de suas leituras. A história é simples: D. Rita, viúva de posses modestas, sonha com um marido rico para a filha, e sofre de enxaquecas. Nesses dias,

“proibia que lhe falasse, gritava com a filha que deleitava-se com romances cortados em tiras sujas e encardidas de rodapés […] Júlia levantava-se tarde; sentia um prazer vago em estar sempre deitada e, com os folhetins debaixo do travesseiro, lia sempre antes de levantar-se; identificava-se naquela leitura,, tinha interesse nas mortes dos personagens, tornava-se cúmplice nos assassinatos e nos adultérios; sentia-se apaixonada e com desejos de fazer o mesmo {…} a tarde, vinha para a janela, esperava a noitinha; o namorado passava e d. Rita sentada na sala de jantar não a via receber uma carta e falar debruçada […] lia à noite a carta e, com expansões exageradas imitadas dos romances, sentia lágrimas, o coração apertava-se-lhe”. 

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A mulher, explica Meyer, a “gentil leitora”, é o destinatário “natural” do romance. Repetiu-se no Brasil aquela “situação de leitura” a que se refere Roger Chartier, largamente representada na pintura pré-romântica, que multiplicou as “cenas de leitura feminina”, sendo típica aquela que mostra uma mulher jovem, recostada languidamente, livro no colo, olhos perdidos, envolvida pelos efeitos emocionais da leitura romanesca.

Comentando as mudanças de costumes na passagem do patriarcado rural para o urbano, Gilberto Freyre sublinha as conseqüências de tais leituras entre as jovens: “Bem dizia em 1885 D. Ana Ribeiro de Góis Bettencourt, ilustre colaboradora do Almanaque de lembranças Luso-Brasileiro, alarmada com as tendências românticas das novas gerações – principalmente com as meninas fugindo de casa com os namorados – que convinha aos pais evitar as más influências junto às pobres mocinhas. O mau teatro. Os maus romances. As más leituras. Os romances de José de Alencar, por exemplo, com “certas cenas um pouco desnudadas” e “certos perfis de mulheres altivas e caprichosas […] que podem seduzir a uma jovem inexperiente, levando-a a querer imitar esses tipos inconvenientes na vida real”. Romances ainda mais dissolutos estavam aparecendo; autores ainda mais perigosos escrevendo livros, chegando alguns até a pretender que “a união dos sexos promovida somente pelo amor seja tão santa e pura como a que a religião e a sociedade consagra”. E ainda mais, santo Deus! a “desculparem o adultério da mulher!”. Contra o que D. Ana Ribeiro recomendava os romances de Escrich e os que ela própria escrevera: A Filha de Jehte e o Anjo do Perdão.”

O Rio de Janeiro, a partir de meados do século XIX, assistiu também ao surgimento de uma infinidade de jornais e revistas dedicados à mulher e a família. Este tipo de imprensa, dividiu com a leitura de romances e folhetins a esfera privada e íntima na qual vivia  maior parte do público feminino, sendo um aliado no lazer, na diversão e na educação de nossas avós. – Mary del Priore

 


leitora

“A Leitora”, de Jean-Honoré Fragonard.



 

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