Machões x Afeminados: a construção do “homem moderno”

Gilberto Freyre foi pioneiro em afirmar que, numa sociedade patriarcal, o corpo, era marcado por diferenças de gênero. “Cada um como cada qual”, dizia o ditado popular. Nada de equívocos. Bordões como “a mulher que é, em tudo, o contrário do homem” sintetizavam as formas de pensar. Curvas, cabeleira comprida e adereços eram coisas femininas. Por seu lado, o homem da passagem para o século XX foi construir sua masculinidade. Masculinidade, não mais fundada apenas na coragem e na honra, como no século anterior.

Emergiam novos comportamentos: a palavra tomava o lugar do gesto, a competência se sobrepunha à dominação e a mediação substituía o confronto. Renunciava-se aos duelos, abandonava-se a faca, forjava-se um ideal novo: o homem educado, senhor de suas paixões, com hábitos burgueses deveria tomar a frente da cena, tornando-se um trabalhador útil ao país. Ele se vestiria de negro, impondo a formalidade. Acessórios? Só alfinetes de gravata, relógios, abotoaduras, chapéus e guarda-chuva. Nas mãos, a aliança. O bigode ou outras pilosidades faciais marcavam, nos rostos, a maturidade sexual. O esportista, no campo de futebol, nas águas da piscina ou no ringue, ou o militar, em tempos de Guerras, cada qual no seu uniforme, fazia suspirar as moças.

Os espaços masculinos também se ampliavam. Escritórios, bares ou sindicatos alimentavam redes de sociabilidade e consumo. Jornais e revistas expandiam o espectro de possibilidades: idas ao Jóckéi Club ou aos estádios. Consumo de “Dynamogenol” ou “NutrioN” para aumentar as forças “nas lutas da existência”. Praias e piscinas esculpiam os corpos masculinos através do fisioculturismo, colorindo-os com “raios de sol”.

A valorização da força física como fator de desenvolvimento da sociedade engendrava outras formas de práticas, agora, também fundadas em conceitos estéticos. O corpo musculoso e forte tornava-se signo de beleza e era revelador de boa saúde. Entravam em cena halteres e pesos. Valores como resistência, autoridade e competição simbolizavam a afirmação da masculinidade.

Ver mais  Comércio florescente, alforrias, missas e um pedaço de fachada

Tais mutações escoravam-se nas mudanças econômicas. A prosperidade alimentava os sonhos de ascensão social. Junto a isso, havia a aspiração de alargar horizontes e formar melhores brasileiros. Na vida privada, a atenção crescente dada à família, aos filhos e ao casamento exige uma adequação entre a casa e a rua. Isso, pois a imprensa promovia a nova masculinidade associando-a ao “caráter, trabalho duro e integridade”. O bom macho era também bom pai de família e provedor.

Na contramão desse ideário encontravam-se os homens que fugiam as regras na conduta e na indumentária. Qualquer sugestão de feminilidade era ferozmente perseguida. Revistas como a Selecta ou a Fon-Fon, entre os anos 20 e 30, ridicularizavam as “figuras dúbias” de “almofadinhas e libélulas” com “cabelos lustrosos e rosto polvilhado”. Representantes de uma época decadente, tais homens eram vistos como doentios e indecorosos: “gostam de usar calças muito apertadas, para que lhes vejam o arredondamento das nádegas”, denunciava o médico Ernani de Irajá. Eram o oposto do “burguês bem sucedido”.

Discussões sobre a origem ou as causas dos “estados intersexuais” apaixonavam médicos. Havia quem tentasse explicar os “missesuais” ou a mistura dos dois sexos em um. Mas não importavam as interpretações. A homossexualidade era considerada, além de imoral, uma anormalidade. Durante os anos 30, o médico Leonídio Ribeiro consagrou-se graças a estudos sobre endocrinologia relacionando-a com as “anomalias do instinto sexual”. Essas seriam o reflexo de mau funcionamento das glândulas. O remédio era o transplante de testículos, inclusive de carneiros ou de grandes antropóides. Afinidades entre homossexualidade e criminalidade? Todas. O crime era uma decorrência da paixão que “invertidos” nutriam entre si. Num quadro de Guerras Mundiais e de reforço do nacionalismo, homossexuais transformavam-se em bodes expiatórios:

Ver mais  Documentos originais: consequências sociais da “queima de arquivos”

“O homossexualismo é antissocial. É a destruição da sociedade; é o enfraquecimento dos países […] a maioria dos pederastas não se casa, não constitui família; portando, não contribui para o engrandecimento, para o desenvolvimento da sociedade e do país. Se o homossexualismo fosse regra, o mundo acabaria em pouco tempo”, apregoava o médico Aldo Sinisgalli. A repressão e o preconceito contra a diferença só faziam aumentar.

O mundo masculino defrontava-se, assim, com novas dimensões que o obrigavam a adotar uma forma ideal. A exibição corporal incentivada pelos novos tempos deveria expressar os papéis sociais aceitos para homens e mulheres. Eles exibindo atitude, atividade, postura propositiva; elas, ao contrário, só na base da leveza e da suavidade. Elaborava-se a masculinidade contrastando-a com a feminilidade. E o cinema, notadamente o americano, só veio jogar água no moinho das diferenças de gênero. O espetáculo do herói e o culto ao corpo alimentavam códigos estéticos que bombardeavam os machos brasileiros com estereótipos.

Segundo alguns autores, Hollywood ajudou a construir não só comportamentos adequados como uma identidade nacional, no início do século XX. Tratava-se da difusão de ideais e utilização de heróis como força de expressão. Nas telas, eles encarnavam a revanche na guerra, a condenação aos desajustes da sociedade, os guerreiros virtuosos do esporte.

Atletas começam a participar de filmes como atores, entre os quais Jonny Weissmuller, ex-atleta de natação e o mais famoso Tarzã, além de alguns famosos lutadores de boxe. Encarnando a imagem de “lutadores”, ainda tinham que ser sexualmente ativos e sustentar financeiramente a família, exercendo a autoridade e o poder – quando não a força e a violência física – no meio familiar e no trabalho. Marcas corpóreas como cicatrizes, cortes, arranhões, tatuagens, mutilações comprovavam o desempenho do homem em sua trajetória de heroísmo; eram provas de uma história exibida com orgulho, impondo respeito. Eram as demonstrações concretas da valentia e da luta, base da cumplicidade entre machos e contraste com os corpos de pederastas e “missexuais”

Ver mais  Pioneiras do cinema brasileiro

Essa ideia de virilidade surgia ainda nos esquemas maniqueístas típicos dos filmes de então. Neles, o oponente, representado como cruel, desonesto e supostamente mais bem treinado, mais forte e com mais condições de vitória, desfilava com um sem-número de mulheres retratadas como fúteis, mais interessadas em seu físico e em seu dinheiro do que em algo “serio”, como a constituição de um lar. Ao mesmo tempo, as mulheres “honestas” sabiam que seu papel era de servir de apoio para a carreira do marido, um herói, e não se prestar ao papel das “pistoleiras”. Para a figura feminina, recuperava-se a velha oposição entre mães e prostitutas, dualidade característica da sociedade patriarcal.

Isso não foi tudo. A partir dos anos 40 e 50, revistas como O Cruzeiro apostavam nas notícias sobre esse novo homem identificado com as mudanças do tempo. Tópicos sobre concursos de fisiculturismo pipocavam: “Bonitões em desfile”, anunciava o Campeonato Nacional de Melhor Físico de 1949. A manchete “Músculos em revista” tratava do 1º Campeonato Nacional de Levantamento de pesos e a escolha do Melhor Físico de 1950. As matérias eram ricamente ilustradas com fotos, ressaltando os “atletas” em diversas poses e em trajes mínimos, impressionantes até para os dias de hoje. A intenção da revista era explorar a sensualidade de corpos masculinos, algo, diga-se, definitivamente novo! – Mary del Priore.

weissmullertarzan

Johnny Weissmuller como Tarzã: modelo masculino nas telas.

2 Comentários

Deixe uma resposta