As opulentas brasileiras

Belas, lindas… como seriam, dentre nossas avós, aquelas que inspiravam os suspiros dos poetas? No século XIX, eram majoritariamente morenas. Manet extasiara-se: “as brasileiras são geralmente lindas; têm olhos e cabelos magnificamente negros”! E ele não foi o único…

Em 1875, John Bigg-Wither também não podia esquecer a harmonia das formas de mulheres negras, sua elegância e nobreza na postura e na altura, sua graça e alegria, a perfeição do desenvolvimento físico, a compleição perfeitamente adaptada ao clima, a pele como “ébano polido”. E exclamava, maravilhado:

“Eu nunca vi em qualquer raça europeia tão perfeito desenvolvimento e maravilhosa simetria na forma como a que quase universalmente essas mulheres exibem. Altas e eretas, com peitos nus e braços que literalmente reluzem quando elas se movem com uma textura de seda lustrosa e belamente tecida, existe um ar de graça e dignidade natural perfeitas em cada movimento que é absolutamente indescritível, mas que uma senhora muito bem-nascida em nosso próprio país poderia ter invejado. A típica feiura (do semblante) é esquecida numa rara perfeição das formas“.

A obesidade, fantasma do final do século XX, já provocava, no XIX, interjeições negativas. Sobre as baianas, “os maiores espécimes da raça humana”, dizia um estarrecido viajante, essas pesavam mais de duzentas libras e andavam “sacudindo suas carnes na rua, e a grossa circunferência de seus braços”. As mulheres brancas eram descritas como detentoras de um corpo negligenciado, corpulento e pesado, emoldurado por um rosto precocemente envelhecido. As causas, explica Tânia Quintaneiro, eram várias: a indolência, os banhos quentes, o amor à comodidade, o ócio excessivo desfrutado numa sociedade escravista ou recém-saída desse sistema, o matrimônio e a maternidade precoces, as formas de lazer e de sociabilidade que não estimulavam o exercício físico, o confinamento ao lar impregnado de apatia, onde prevalecia o hábito de “desfrutar de uma sesta, ou cochilo depois do jantar”, como explicava James Henderson em 1821.

Apesar do declarado horror à obesidade, os viajantes reconheciam que o modelo “cheio”, arredondado, correspondia ao ideal de beleza dos brasileiros, o que explicavam pela decorrência do gosto dos ancestrais. Gorda e bela eram qualidades sinônimas para a raça latina meridional, incluídos aí os brasileiros, e para explicar essa queda pela exuberância era invocada a influência do sangue mourisco. Dizia-se que o maior elogio que se podia fazer a uma dama no país era estar a cada dia “mais gorda e mais bonita”, “coisa”, segundo o inglês Richard Burton, em 1893, “que cedo acontece à maioria delas”. Gordas quando mocinhas, ao chegarem aos trinta anos já eram corpulentas, incapazes de seduzir o olhar dos estrangeiros. A que em jovem possuíra formas longilíneas, breve seria volumosa e pesada senhora. “O leitor pode notar, nessas moças vestidas de preto da cintura para cima, um contraste com a gorda matrona que a segue”, queixava-se Daniel Kidder.

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Alguns viajantes atribuíam a palidez e o desmazelo das moças à severidade com que eram tratadas pelos pais e maridos, sendo mantidas muito segregadas da vida social – situação ainda mais grave no interior, em que passavam às vezes meses encerradas entre quatro paredes, sem aparecer às janelas. A sujeira e o desleixo que diziam testemunhar provocavam, segundo eles, violentas deformações físicas. As mulheres brancas, ainda que em geral bem tratadas, levavam “uma vida estúpida, fechadas para o mundo em seus quartos escuros”, e, por esse motivo, pareciam também descoradas e doentes, queixava-se Herbert Smith em 1879.

Mesmo mulheres mais jovens não deixavam de exibir no rosto uma tonalidade amarelada, desagradável e enfermiça. Um certo Gastón, em 1867, lamentava-se de que “existia uma marcada deficiência de beleza” por parte daquelas que estiveram sob sua observação. Seu diagnóstico, depois de assistir a uma missa em Paranapanema, era de que a “grande maioria era absolutamente feia”! A pá de cal veio, na mesma época, de Ulick Burke. Para ele, beleza física feminina era coisa inexistente no Brasil.

Se houve aqueles que enxergavam pouca beleza em nossas avós, não faltaram os que preferiam elogiar. Os cabelos brilhantes e densos, os olhos escuros, fogosos, curiosos e expressivos chamaram a atenção de muitos estrangeiros. O inglês John Mawe achava as mineiras “decididamente lindas”! O missionário Kidder exultava com a beleza das paulistas, sem igual no Império e “motivo de orgulho e nobreza de sua linhagem”. Percorrendo, em 1865, o vale do Paraíba, Alfredo Taunay registraria, em cartas à família, “os rostos de belas cores”, “moças agradáveis e bonitas”

Uma olhada no álbum de fotografias que acompanha o livro Salões e damas do Segundo Reinado confirma a tese de que os conceitos de beleza, como quaisquer outros, são construções culturais que obedecem aos critérios de uma época. As figuras da Senhora Taupin, da Baronesa de Canindé, de Sinhazinha Barros Barreto ou da Viscondessa de Guaí revelam fisionomias fechadas, arredondadas pelo queixo duplo, escurecidas por um indisfarçável buço, encerradas em imensos vestidos balão incapazes de sequer sugerir o que escondiam. O talhe fino tantas vezes descrito por José de Alencar? Nem pensar.

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Gilberto Freyre chega a dizer com graça que as “vastas e ostensivas ancas” das matronas brasileiras eram verdadeiras “insígnias aristocráticas”, a “descadeirada” sendo olhada como deficiente de corpo! A mulher de formas mais salientes tendia a ser considerada a mais ortodoxamente feminina, e assim o foi por muito tempo. Manuel Bandeira, em sua Evocação do Recife, cantou as “caderudas” recifenses que se banhavam nuas no então limpo Capiberibe. Ancas eram o símbolo da mulher sexuada, desejável e fecunda. Feliz prisioneira dessas formas, ela sublinhava a relação entre a conformação anatômica e a função biológica, ao mesmo tempo sagrada: reproduzir, procriar, perpetuar.

As ancas ganharam grande aliada com a moda das “anquinhas”. Essa espécie de enchimento artificial, capaz de valorizar o baixo corporal feminino, deu ao posterior da mulher uma silhueta ainda mais luxuriante. Se fosse preciso, usavam-se suplementos de variados tipos, feitos de barbatanas, lâminas de ferro, pufs de jornal e até “pneumáticos” para preencher e valorizar as virtudes calipígias das que não as tinham. Houve quem se prestasse ao riso dos amigos por usá-las tão exageradas – eram ridicularizadas no momento da missa, pois quem estivesse atrás de um desses monumentos nele escorava o livro de orações. Quem conta é Wanderley Pinho:

Devia ser graças à ajuda de um desses postiços cheio de ar que certa Baronesa exibia, apesar dos tributos que já havia pago à idade, e continuava a pagar, umas parábolas de forte arrojo. O dandy ousado, arriscando-se muito, quis tirar a limpo aquela burla ou inacreditável realidade. Muniu-se de um grampo de chapéu, e observado de longe por um grupo a quem comunicara a aventura em que ia meter-se, foi sentar-se num sofá junto à titular, por sinal, excelente palestradora. E, tendo feito seus cálculos e medidas, (…) ia enfiando no flanco, através de renas e tufos de seda e saias de baixo, o estilete audaz, milímetro por milímetro, tateando, receoso de, ao invés de uma ampola de ar, encontrá-la de carne sensível. A Baronesa nada acusava […] e o grampo foi menos suavemente recolhido ao bolso do analista minudente. Quando vaidosa, se ergueu a Baronesa notou, admirada que as saias lhe desciam em cauda meio palmo abaixo; e os conspiradores daquela audácia riam à socapa, contemplando o desapontamento murcho da fidalga, despojada dos efeitos remoçantes de sua câmara de ar“.

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No século XIX, belas eram, portanto, as elegantes, possuidoras de um corpo-ampulheta, verdadeiras construções trabalhadas por espartilhos e anquinhas capazes de comprimir ventres e costas, projetando seios e nádegas. A couraça servia para protegê-las simbolicamente do desejo masculino, alimentado pela voluptuosidade da espera, do mistério, do jogo de esconde-esconde que as mulheres traduziam com o corpo.

A mão cobria-se com luvas; os cabelos, com véus e chapéus; os pés, com sapatos finos; o corpo, submerso por toneladas de tecidos, só se despia por ocasião de bailes. Nessas ocasiões, os decotes revelavam o verdadeiro desenho de pescoços e ombros. O ideal do charme feminino correspondia a um mosaico de cheios e vazios, curvas e retas: ombros arredondados e inclinados em suave queda, pescoço flexível e bem lançado, seios “obviamente” opulentos, bacia larga e evasé, talhe esbelto e fino, braços carnudos, pulsos delicados e magros, mãos longas, mas recheadas, dedos afilados, pernas sólidas, pés pequenos e de artelhos bem graduados. Curvas, ondas, acidentes compunham a cartografia física, feita de escrupulosa distribuição de superfícies e volumes – corpo em formato de violão. 

Quanto ao rosto, a moda da fisiognomonia, ou seja, a arte de conhecer o caráter das pessoas pelos traços do rosto, ditava regras. Trocas fisiológicas entre interior e exterior, relações entre físico e moral compunham um abecedário de normas para fazer o rosto “falar”: a fronte alta e lisa era denotativa de temperamento dócil e serenidade de alma; sobrancelhas naturalmente arqueadas diziam da franqueza de sua possuidora; olhos negros anunciavam calor e vontade; os azuis, ternura e paixões tranquilas; o nariz não podia ser nem muito pontudo nem muito largo, e as aletas, suficientemente bem recortadas para exprimir “impressões fugitivas”; a boca jamais poderia ter lábios finos, pois os associavam à mesquinharia.

Tratava-se de uma beleza feita de convenções, que deveria inspirar pânico às nossas avós, temerosas, coitadas, de que se descobrissem seus vícios e defeitos, no menor dos movimentos, no mais inocente dos gestos, na menos feliz das características físicas e hereditárias. – Mary del Priore

joia18

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